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‘A vida que me criou assim’

18/09/2015

‘A vida que me criou assim’

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Virginia Bastos de Mattos completa 100 anos em outubro (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Por Laila Braghero

Sentada em um pedaço de varvito, mais conhecido como pedra de Itu e ex-integrante da antiga calçada, Virginia contempla uma folha caída no chão entre tantas outras no jardim da frente da casa cor-de-rosa. Havia me levado até ali para mostrar o local onde costuma passar quase todas as tardes observando o movimento da Rua General Osório, no Centro de Capivari (SP). “Eu vejo alguém que passa, que olha, que apanha flor. Eles não me veem.”

O casarão é tão antigo quanto a atual proprietária, que chegou à cidade em 1949. Sabe-se que foi comprado pela dona anterior, dona Jovita, em 1908. Já foi menor, porém sempre com a mesma formosura. Tem até livro sobre o lugar – A casa de Capivari –, escrito por toda a família em 2008. Os mais novos na época deixaram suas contribuições em desenhos.

Nesse domingo, 23 de agosto de 2015, com a bengala na mão esquerda, Virginia tenta puxar para si a folha amarela enquanto fala, como se quisesse tirá-la do caminho, protegê-la de algum par de pés calçados e assassinos. Recorda-se do ginásio e de como aquele órgão resumido a clorofila era importante para a professora de Biologia Branca do Canto e Melo, descendente da Marquesa de Santos. Hoje, ela crê que parte das instituições já não dá muita relevância ao jeito lúdico de ensinar.

“A gente vivia procurando folhas de vários tipos. Essa, por exemplo, é bem diferente. Parece uma seta. A gente ia onde tinha jardim pegar folhas para fazer o herbário. Agora tem de todo jeito aí e não vem ninguém buscar. Ninguém se interessa.” Essa professora, conta, também deu a ela aulas de Francês e História. “Ela deu aula em várias épocas. Era muito inteligente. Quando fez concurso para ser professora, havia gente que foi especialmente para assistir a prova oral dela.”

Virginia Bastos de Mattos gosta de falar dos tempos da escola. Integrou a turma de 1925 da Caetano de Campos e se formou em Filosofia pela Faculdade de São Bento, ambas em São Paulo. “Era a Escola Normal da Praça, como eles chamavam antigamente. Depois fui à Faculdade de São Bento, que era particular, ali mesmo, bem no Centro, no Largo de São Bento. Tem o colégio e em cima a faculdade.”

Trocava as panelas pelos cadernos desde a infância, quando tinha o sonho de ser jornalista. Mas não foi atrás por causa da mãe, Maria Luiza, que acreditava que as redações não eram ambientes adequados para mulheres. Além disso, as palavras saíam embriagadas das máquinas de escrever, que enfrentavam longas madrugadas e o frio da capital paulista.

Por outro lado, a mãe de Virginia sempre apoiou os estudos da menina e dispensava a ajuda dela na cozinha, já que nunca teve muitos dotes culinários. “Ela falava: ‘tem de estudar, vai’. E minha irmã gostava de ter essa folga para não estudar.” Ela é a mais velha de cinco irmãos e a única viva. Dois deles morreram ainda crianças. “Foi o trauma das nossas vidas.”

“Uma morreu bem pequena e outro morreu com 12 anos. Sofremos tanto. Um menino sadio que teve apendicite supurada.” Dois anos depois, Maria Luiza ainda não tinha superado a perda. “Quando me formei na Escola da Praça tinha uma missa e mamãe não foi. Ela disse: ‘ah, Virginia. Tantos dias para escolher, foram escolher 12 de dezembro?’ Falei: ‘mas não fui eu que escolhi’. Mas mamãe não foi na minha missa”, diz, com a voz meio embargada.

Enquanto conversávamos, o mais novo dos oito filhos de Virginia regava as plantas maltratadas pela falta de um jardineiro. “A gente tinha um, mas eles estão muito careiros, porque são poucos. E também não temos certeza se eles sabem [o que estão fazendo]; vão cortando tudo. Quando meus filhos moravam aqui eles cuidavam muito. Principalmente o Antonio, que gosta de planta.”

Apesar disso, Otavio é quem tomou a iniciativa naquele dia. O Jean Reno de pele capuccino e educação nitidamente herdada de Virginia, característica comum entre os membros daquela família, arregaçou as longas mangas da camiseta polo listrada de azul marinho, vermelho e branco e botou a mangueira para trabalhar.

Para a mãe, o turismólogo, que não exerce a profissão, “faz um pouco de tudo” no setor administrativo da Secretaria de Esportes da Prefeitura de São Paulo. “A mulher dele trabalha lá”, disse em nossa conversa inicial, três semanas atrás. Valderez, 54, também cursou Turismo – o casal se conheceu na faculdade – e, na verdade, se aposentou recentemente.

– A senhora lembra a idade do Otavio?

– Mas parece incrível como não me lembro de nada.

– 55. – respondeu Railda, durante minha primeira visita à professora.

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Dona Virginia sempre trocou as panelas pelos estudos (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Era manhã de segunda-feira, 10 de agosto, e a cuidadora de idosos varria a casa enquanto eu conversava com Virginia na sala de jantar. Entre palhas e rasteirinhas arrastando pelo assoalho, ficava de ouvido na conversa para acudir a senhora caso ela se perdesse nas memórias. A cada pausa para lembrar o nome de uma das proles, a baiana parava a vassoura e franzia a testa, fitando a mulher por trás. Quando o danado do substantivo próprio voltava à lembrança, ela retomava o serviço.

Tchá, tchá… TCHÁ, TCHÁ. Railda ia e voltava entre um quarto que parecia ser o de Virginia e a sala. Morena, tinha os cabelos castanhos escuros presos com uma presilha branca abaixo do coque, baby look azul marinho e calça jeans com pequenos brilhos nos bolsos de trás. A rasteirinha era bege e abotoava na altura do tornozelo.

Aos 31 anos, está com dona Virginia há três e em Capivari desde 1994, quando os pais vieram da Bahia em busca de emprego. Chega de manhã e passa o dia cuidando da casa, da roupa, da comida, de Virginia. Aos sábados, vai embora após o almoço e folga aos domingos. E não dorme lá. Isso é função de outra cuidadora, Ivani, que foi contratada há cinco meses.

“Ela ficou 40 dias de cama com dengue. Depois disso, os filhos acharam melhor contratar alguém pra ficar à noite. Antes ninguém dormia com ela, porque ela só aceitava eu aqui. Agora está aceitando melhor a outra”, contou. “Mas se perguntar [da dengue], ela vai falar que foram só dois dias.”

Também pudera. A dois meses de completar 100 anos, Virginia tem apenas lapsos de memória quando o tema é mais recente. A pressão arterial é melhor do que a de Railda, reconhece a própria cuidadora, e não toma nenhum remédio. Só algumas vitaminas quando o médico indica. As pernas continuam vistosas como reafirmado dia desses por minha vó, 15 anos mais nova – dona Mariquinha costumava admirar a beleza de Virginia na missa.

Naquela ocasião, eu estava sentada em um sofá de três lugares próximo à porta branca de madeira da entrada. Virginia havia se ajeitado à minha frente, em uma das duas poltronas cinzas, que um dia foram tão rosas quanto a casa e fechavam o círculo de opções de assentos, além de uma cadeira. Suas costas, longe do encosto, eram levemente curvadas e acentuavam o olhar desconfiado que ela me lançava no início do papo.

A meia-calça fio 15 estava coberta das batatas das pernas para cima por um vestido branco com estampa geométrica. Este, por sua vez, se escondia em parte por um casaquinho rosê com meia dúzia de figuras na altura do peito que me lembraram espadas de baralho. A mão direita sobre os joelhos apalpava com cuidado cada dedo da companheira esquerda. Os cabelos, bem branquinhos, foram penteados para trás.

– Deixa eu ficar mais perto pra ouvir bem.

– A senhora quer por o aparelho? – pergunta Railda.

– Hein?

– Quer por o aparelho?

– Não. Ele tá sem pilha.

– Chegue mais perto dela pra ela ouvir direito.

De imediato, salto para um banquinho de madeira semelhante àqueles que a gente repousa o pé para ver tevê. Sentei com o corpo de lado, mas fiquei mais bem colocada à frente de Virginia, de modo que ela me ouvisse melhor e lesse meus lábios com facilidade. Comecei falando sobre o projeto e minha pós-graduação em Jornalismo Literário, mas logo fui interrompida.

“Sabe, eu não quero cortar seu ideal de fazer alguma coisa, mas eu não sou uma pessoa que estou vivendo hoje. Eu já vivi. Eu estou acabando os dias. Eu sou quase centenária.” Sem que eu argumentasse, ela continuou. “Já não tenho mais essa participação entusiasmada. Pode ser uma participação afetiva. Quero bem a cidade, que não é a minha cidade, mas eu quero bem. Nunca morei tanto tempo num lugar só como eu moro em Capivari.”

Notei certa preocupação na fala de Virginia, mas só saberia o motivo minutos mais tarde. Sem mais explicações, contornei sua falta de vontade em falar sobre o agora perguntando sobre seu passado, tão presente ainda hoje. Não tem como falar dessa mulher sem repassar esse século de vida que exala por cada centímetro de seu corpo, compartilhando uma sensação de tranquilidade que só sentindo para saber como é.

Conversamos, então, sobre quando ela se mudou para a Terra dos Poetas e sobre o marido, com quem dividiu os problemas e somou a sabedoria durante 57 anos até ele morrer, em 1993. Nascida em São Paulo no dia 20 de outubro de 1915, se casou com o professor de Filosofia e Francês Carlos Lopes de Mattos, cinco anos mais velho, na capital do Rio de Janeiro. Lá, eles tiveram três filhos, Maria Luiza, Daniel e Carlos Alberto.

De volta à capital paulista, nasceram mais dois: Maria Virginia e Antonio Carlos. Pergunto se Maria Virginia tem acento. “Não. No meu tempo nada tinha acento. Mas você pode por a vontade, porque não é Virginía, é Virgínia, paroxítona.” Já em Capivari, cidade que Carlos escolheu para lecionar após ser aprovado em um concurso público, o casal teve mais três filhos: João Augusto, Maria Augusta e Otavio.

Um engenheiro agrônomo, um técnico agrícola, duas professoras, um juiz, uma bibliotecária, um engenheiro eletrônico e o turismólogo. Daniel, o técnico agrícola, e Carlos Alberto, o juiz, já morreram. “Foi tão rápida a morte do Daniel. Ele andava um pouquinho desequilibrado, fora das regras da vida. Não lembro bem. É um tempo tão obscuro para mim. Meu marido tinha morrido há pouco tempo também e eu estava muito fragilizada. E o Carlos Alberto foi ficando com problemas no estômago e acabou morrendo [em 2004].”

“Hoje eu estou fora do tempo, sabe?”, recomeça, depois de não ter conseguido lembrar em que ano o mais velho se foi. “Tem uma amiga que está bem doente e estou só pensando nela. Não estou muito boa para entrevista.” Ela se referia à sua melhor amiga, Glaucy Quagliato. “Ela está internada na UTI, mas não tem notícia. O médico falou que tem de aguardar, então a gente fica assim preocupada.”

Para descontrair um pouco, pergunto qual o segredo da longevidade de dona Virginia, bem como das pernas tão invejadas por mulheres de sua época e até mais novas. Ao contrário das mil e uma lorotas que vemos nas capas de revistas femininas, me lançou uma resposta que pode agora acabar com as últimas esperanças de muita gente por aí. “É genético.”

Na família por parte de mãe, ela afirma que teve muitas centenárias. “Fui à festa de uma que estava fazendo 103, e outras eu sabia por notícias que viveram mais de 100”, garante. “Mas isso não é mérito da gente, porque não é esforço. Não fiz nada para ter essa idade. A vida que me criou assim.” Apesar de sentir leves dores nas costas vez ou outra, não tem restrição alimentar.

 

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)
‘Eu não sou uma pessoa que estou vivendo hoje. Eu já vivi’ (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Além de professora, Virginia também é escritora, ainda que não goste muito do título, tampouco de ser chamada de autora. Em 1986, ajudou o marido na preparação final do livro sobre o capivariano Rodrigues de Abreu, intitulado Vida, paixão e poesia de Rodrigues Abreu. Dezoito anos depois, coordenou a publicação de A ronda nas ruas: a história nas ruas de Capivari, por meio do Movimento Capivari Solidário. A obra contém dados históricos de Capivari contados a partir dos nomes das primeiras ruas.

E, no mesmo ano, publicou Léo Vaz: o cético e sorridente caipira de Capivari, jornalista que, entre outros periódicos, dedicou mais de 30 anos de sua carreira ao jornal O Estado de S. Paulo, como redator, secretário e, por último, diretor, durante o exílio de Julio de Mesquita Filho. Hoje, Virginia disse que não escreve mais. “Eu escrevia muitas cartas. Tinha muitos parentes. Mas, com a internet e o telefone com mais facilidade fui largando.”

Os encontros do Movimento Capivari Solidário, que eram semanais, quase não ocorrem mais. “Eles estão se espaçando muito”, desde que um dos fundadores e então presidente, Waldemar Thomazine, morreu, no ano passado. “Eu viajava muito. Agora não tenho compromisso nenhum. Eu espero que venham na minha casa. Quase todo fim de semana eu tenho alguém. Eu gosto que venham.”

Embora tenha uma família grande, Virginia mora sozinha. “Eles não têm condições de morar aqui. Tiveram de sair por causa do trabalho, alguns para terminar a faculdade”, justifica. “Uns vêm me ver com mais frequência. Outros são mais difíceis de sair. Todo mundo fica tão cheio de serviço.” Durante a semana, almoça com Railda. “Eu gosto dela”, sorri.

As manhãs sempre passam rápido na casa cor-de-rosa, para a escritora. Suas atividades variam entre acordar não muito cedo, ajudar a “fazer alguma coisa”, tomar um pouco de sol e andar pelo jardim, também com o auxílio da cuidadora. “Quando tem mais gente pra almoçar eu dou ajutório, mas essa moça é muito esperta e de boa vontade. Em geral ela faz.”

 

Me convida para conhecer a casa. As paredes são repletas de quadros, porta-retratos, espelho, crucifixo, caixinhas com ambientes em miniatura feitos por Maria Luiza e Maria Virginia e muitas lembranças. Os móveis têm um ar provincial e combinam entre si pelo mesmo tom de madeira, escura, de mogno. Acima das nossas cabeças, um lustre muito antigo exibe uma cúpula cor de laranja com o desenho de uma árvore repleta de galhos.

Logo acima do sofá em que eu estava cinco molduras chamam a atenção. Os sogros de Virginia, duas antigas fotos do casal português, fazem companhia a Carlos, que está em outra imagem tirada em Grand-Place, em Bruxelas (Bélgica), 40 anos depois que ele se formou no país. “Ele teve uma morte muito suave. Foi um santo. Uma pessoa muito boa e humilde.”

– Do que ele morreu?

– Fragilidade da vida.

Ao lado, papéis amarronzados destacam fotos mais pretas do que brancas do pai de Virginia, Benedicto, que foi desembargador, e do tio, em cuja casa ela nasceu. “Era cunhado da minha mãe.” A outra fotografia é para se lembrar de Leonardo Van Acker, que foi seu professor de Filosofia. “Eu fui aluna dele e tinha uma grande admiração.”

À minha direita, atrás da mesa principal, uma coleção de pratos antigos. “Todos têm uma história.” Um foi da avó, outro tem a imagem de Dom Quixote, um terceiro estampa a Torre de Pisa, na Itália, presente de Maria Luiza. “Esse azul grande foram os alunos do ginásio que me deram no Dia das Mães. Tem o nome de cada um dos meus filhos. Ainda não tinha o Otavio”, explica, apontando um prato que lembra um mapa.

As amigas pintaram a maior parte dos itens: Meiri, Dirce, Iolanda. Outros a própria Virginia. “Essa também foi a Iolanda”, continua, mostrando uma louça verde com três flores. “Ela tentou camélias, mas é difícil, porque são brancas e não têm centro. E aqui foram os holandeses que estiveram em nossa casa”, diz sobre um pires. “Eram parentes do padre Eusébio e eu os hospedei aqui.”

Em 2008, a professora recebeu da Câmara de Capivari o título de Cidadã Capivariana. Como forma de homenageá-la, os filhos deram a ela a estátua de uma capivara. A peça fica exposta junto ao desenho de um galo em patchwork, também feito por Maria Luiza. “Ela faz trabalhos assim, miudinhos. Esse foi um dos mais recentes que ela fez. É muito bonito.”

 

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Professora recebeu o título do Cidadã Capivariano em 2008 (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Uma porção de livros catalogados depois, chegamos ao “escritorinho”, no fim do corredor, onde os filhos costumavam estudar.

– O que é aqui? –aponto um papel com vários títulos pregado na parede.

– São os livros que eu empresto. Eu marco, porque se não, não vem mais. Eu acho que foi a Guta [Maria Augusta] quem escreveu pra mim.

Imagens de santos produzidas por artistas diferentes, com técnicas diferentes; uma pintura feita por um dos filhos; livros e mais livros; um computador antigo; uma reprodução em mármore da Escola Normal Caetano de Campos; o diploma do marido. “O Carlos não é Lopes. Ele é Alves de Mattos. Eles acham que quem foi transcrever não entendeu”, aponta o nome no papel timbrado.

Antonio Carlos completa: “Quando ele estava no primário não precisava ter documento e talvez ele assinasse certo. Quando ele foi fazer o Serviço Militar, eu tenho a ficha dele, ele assinou na beirada da ficha Alves de Mattos, mas a letra dele era muito apertadinha e dava para entender que era Lopes, então o funcionário do Serviço Militar datilografou Lopes de Mattos”.

 

Nesse domingo, os familiares de dona Virginia chegaram quando ainda estávamos no jardim. Otavio parou de molhar as vistosas camélias brancas para tirar a corrente do portão de ferro, também branco. Um dos netos, o analista de sistemas Rafael, 42, filho de Carlos Alberto, chegara com a esposa Roberta, da mesma idade, e com o filho mais novo deles, João Pedro, 13.

Ouço três portas batendo e um casal de vozes dizendo “olá”. Me levanto para cumprimentá-los, enquanto Virginia continua sentada na pedra de Itu.

– A senhora quer ir lá?

– Não. Eles vêm aqui.

– Oi, Roberta. Nós estamos aqui.

– Que gostoso, tomando sol. – responde a advogada. Morena de cabelos longos, vestia uma regata branca por dentro de uma saia verde água com flores bordadas, contrastando com as sapatilhas amarelas. – Oi, tudo bem? – diz, vindo ao meu encontro. Nos apresentamos.

– Ela está fazendo uma reportagem. Estou sendo entrevistada. – conta Virginia.

– Ah, é? Ah, que legal. Então estamos atrapalhando.

– Ah, uma jornalista. Que chique, hein, vó? – brinca Rafael. Após cumprimentá-lo também, explico ao trio o motivo da conversa e digo que, no dia da macarronada sagrada, meu objetivo é observar.

– Vixe, hoje vou ter que me comportar.

– Ih, Rafael… – ri Roberta, seguida dos demais. – Deixa eu colocar a sacola lá e a gente volta.

– Acho que nós vamos também. – informa Virginia, levantando.

– Mas tá gostoso aqui. A gente pode ficar. – defende Rafael.

– Tá porque não é você que tá sentado aqui.

 

(Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Centenária vive sozinha na casa cor-de-rosa (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

O almoço saiu por volta das 13h. Antes disso, a família trocou um dedo de conversa na sala de jantar. Rafael, com a pele bem mais clara que os demais, barba e bigode, faria o macarrão com molho de tomate. O bate-papo não tirou a concentração de Tatiana, 20, filha de Otavio e Valderez, que, nesse jogo de “ou estuda, ou faz comida”, opta pela primeira atividade e não desgruda do iPad. Ela lembra muito o avô, segundo dona Virginia.

“Nada atrapalha a Tati”, começa, mexendo a cabeça em direção à mesa onde a neta está estudando. “Ela faz o que tem de fazer, a prosa aumenta e ela fica ali. Meu marido também. O Carlos ficava ali. O rádio ficava ligado e ele estudando. E as crianças pulando, correndo. De vez em quando ele entrava na prosa de um e depois continuava. Eu não consigo. Eu preciso me esconder para estudar, se não me distraio com qualquer coisa.”

A matriarca belisca com o palito de dente pedacinhos de pizza trazidos pela nora para forrar o estômago. Estava com o mesmo casaquinho rosê de segunda-feira, desta vez sobre um vestido de listras verticais e pregas. “Meio-dia nós almoçamos”, me garante às 11h30, curvando o corpo para a direita, na minha direção. Estávamos sentadas no sofá de três lugares e os demais faziam nossa volta. A afirmação, porém, veio seguida de muita gargalhada.

– Olha o cozinheiro onde está. Ela falou que meio-dia a gente almoça e você está aí batendo papo. – adverte Roberta, em tom de brincadeira.

– Meio-dia? Então deixa eu ir lá.

Rafael ainda esperou mais uns 15 minutos sugeridos pela esposa e foi. O restante da família foi atrás. Enquanto ele mexia a massa no fogão, João Pedro ralava o queijo, Roberta picava o cheiro-verde e Otavio desenformava o pudim que ele havia feito com leite de caixinha pela primeira vez. Valderez, que já tinha preparado o frango com batatas, passou para o posto de copilota. Todos ajudaram. Até Tati deu folga ao iPad.

A cozinha não é muito grande. De um lado, fogão, pia, geladeira e prateleiras. Do outro, mesa de fórmica, outra geladeira, três peneiras penduradas em uma porta que poderia ser um armário embutido e mais um armário, antigo depósito de lenha. A casa também tinha poço, porque a água encanada não era suficiente. Ele ainda continua lá, com a tampa de cimento, mas vazio. E no banheiro não tinha privada, porque a antiga dona dizia que deixava a casa cheirando mal. Com a mudança, também foi instalado um chuveiro e um bidê. A banheira saiu.

Além disso, a casa tinha apenas três quartos. Para comportar a família, Carlos mandou construir uma casinha no quintal com mais dois dormitórios, embaixo de uma pereira, cujo tronco aberto já apodreceu. “Quando nós chegamos aqui ela já era velha.” Não coincidentemente, a família batizou o local de Domus Piri (Casa da Pera), assim mesmo, em latim. “Meu filho Carlos Alberto fez até uma placa com casca de árvore e uma pera de massinha, mas roubaram a pera. Não sei como. Ou caiu e sumiu na enxurrada. Não sei.”

Ao lado da Domus Piri existe uma extensão do quintal onde vivem, do outro lado do portão de madeira, ao menos sete jabutis. No domingo, Otavio me mostrou um bebê jabuti que nascera naqueles dias. Quando pequeno, eles retiram o animal do bando e cuidam dentro de uma caixa, para assegurar que ele não se perca no meio do mato e receba a alimentação necessária.

 

A comida começou a ser degustada após um brinde à saúde e ao jornalismo. Na pauta da refeição, filmes, ciclovias e ciclofaixas, transporte público, bons lugares para apreciar rodízios de pizza, Jedi’s Burger (nova lanchonete temática inspirada no Star Wars), São Paulo. Todos os que estavam na casa naquele dia moram na capital. E, como eles mesmos disseram, se veem mais em Capivari do que por lá. Virginia seguia silenciosa.

Falavam sobre o Templo de Salomão, Eduardo Cunha e os falsos profetas quando a voz suave e meio rouca da senhora rompeu o tilintar dos talheres. Olhando a tigela com doce de abóbora na mesa, feito por ela com a ajuda de Otavio, começou a contar sobre quando passava pela casa de umas amigas com a irmã, depois da escola, e eram convidadas a entrar.

“Era perto de casa. Elas diziam: ‘vem comer doce de abóbora. Vamos entrar pra gente conversar mais um pouco’. Um dia, minha irmã e eu aceitamos e fomos. E tinha doce de abóbora, mas era ruim. A primeira vez nós já achamos. A segunda foi ainda pior. Não passamos mais lá até acabar esse doce. Elas eram amáveis, mas não sabiam fazer”, finaliza, em meio às risadas.

 

Naquele domingo, Virginia almoçou na companhia de três gerações (Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Naquele domingo, Virginia almoçou na companhia de três gerações (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Após o almoço, eu guardava minhas coisas para ir embora quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, o filho de Virginia, Antonio Carlos, 64, pede para falar comigo. A conversa foi breve, mas muito rica. Em poucos minutos, o paulistano, que voltou a morar em São Paulo depois de adulto, resumiu coisas que “tinha certeza que mamãe não ia se lembrar de falar”.

Virginia, que segundo Antonio Carlos é prima da rainha Sílvia da Suécia, levou a vizinha Inezita Barroso à escola durante anos. A cantora sertaneja, que morreu em março deste ano, era dez anos mais nova que a amiga. Também foi colega do ex-governador de São Paulo, Franco Montoro, e de sua esposa Lucy.

Em outubro, mês que a escritora completa seu centenário, disse que os irmãos abrirão a casa cor-de-rosa para o público que quiser cumprimentá-la. A família também planeja repetir uma exposição realizada em 2000, com todos os objetos antigos da matriarca. Depois, haverá ainda uma festa particular em São Paulo, fechando as comemorações.

Desligo o telefone, coloco a mochila nas costas e me dirijo à porta.

– Aparece, viu?

– Você mora onde mesmo? Em Rafard? Não? – pergunta pela terceira vez naquele dia e quinta ao todo.

– Em Capivari. Perto da escola Carreta, no Engenho Velho.

– Ah, sim. No Engenho Velho.

– E você é? Seu nome?

– Laila.

– Laia?

– Laila.

– Laila?

– Isso.

– Você vai a pé?

– Vou. Quero aproveitar para andar um pouco.

– Tchau. Até mais. – continuo.

– Vai com Deus e aparece o dia que você quiser.

– Desculpa incomodar a senhora, viu?

– Não incomoda. A hora que eu não puder eu digo: agora não.

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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