Altino Arantes sobre Amadeu Amaral
Amadeu Amaral foi jornalista. Militou na imprensa, desde os primeiros anos da sua mocidade até os derradeiros dias da sua carreira.
Ali, foi que a sua inteligência se formou e se desenvolveu; que a sua instrução se completou e se aprimorou; que a sua pena se apurou, enrijou e se adestrou.
Colaborando sempre e quase diariamente no grande jornalismo desta e da Capital Federal, e nomeadamente no “Correio Paulistano “, no “Estado de São Paulo” e na “Gazeta de Notícias”, versou com brilho inconfundível assuntos de letras e de arte; debateu, com elevação e proficiência notáveis, as questões políticas e sociais que os acontecimentos chamavam à ordem do dia. Por isso mesmo, teve de sustentar polêmicas ardorosas, a lugares apaixonados. Mas nunca quebrou ou, sequer, desviou o aprumo impecável das suas atitudes altivas e cavalheirescas. Jamais amesquinhou, injuriou ou difamou o adversário. A sua pena nunca se degradou na mofina, infamou-se na calúnia ou acumpliciou-se no malefício. Nunca transigiu com os amigos, mas também nunca capitulou com os Potentados. Porque Amadeu Amaral – sempre o mesmo, coerente sempre com o seu feitio e com o seu ideal, queria que a imprensa fosse o que ela realmente devera ser: uma verdadeira magistratura intelectual – alta, serena e íntegra; sem rancores e sem prevenções; sem interesses subalternos e sem ambições inconfessáveis; sem suborno e sem subserviência.
E foi dentro destes moldes que ele compreendeu e praticou o seu dever de jornalista. Dizem que também foi político… Teria ele esquecido, momentaneamente que fosse, a prudente advertência de Jean Moréas: un artiste ne doit jamais faire de la politique, vu, que rien nexiste en dehors de lart?
É possível. De minha parte, porém, asseguro-vos que nunca o encontrei nessas paragens ingratas e descampadas, varridas de ventos e de tempestades, em que, por meu mal, sou vaqueano. Se por essas catingas ásperas e esmarridas, algum dia, ele viandou – foi de vereda, abstrato, quase displicente e – por defender-se do espinho e do pó da estrada – embuçado todo numa túnica ideal de sonhos alvejante. Se por essas planícies requeimadas ele passou… passou a passo lesto, na passagem célere e distante de pássaro das alturas que perpassa rumo da cordilheira, triste e só sem fazer nenhum mal ninguém.
Nem mesmo, como tantos outros, à sua própria Pátria… Por tudo isto, um outro poeta houve – e dos melhores e dos mais queridos – que, excedendo-se, talvez, na licença que a trovadores e a pintores classicamente se confere, se arrogou prerrogativas pontifícias e… canonizou o confrade e amigo. Proclamou-o “Santo Amadeu”… Na linguagem eclesiástica, santo quer dizer herói. E herói Amadeu Amaral o foi, em verdade, pela sublimidade do seu engenho, pelo equilíbrio e pela harmonia da sua existência, pelo fulgor das suas virtudes, pela benemerência da sua obra artística e da sua atuação social. Imagina Delteil, no mais moderno dos seus livros, que os homens são crianças grandes, às quais Deus, mestre-escola bravio e carrancudo, impõe, por castigo, a conjugação de um determinado verbo. A uns, ele manda conjugar o verbo sonhar. A outros, trabalhar. A outros ainda, sofrer. Mas de todos os mais sobrecarregados – a estes caberá o maior quinhão no dia da recompensa final – são aqueles a quem tocou conjugar o verbo amar… Ora, dir-se-ia, meus senhores, que Amadeu Amaral, bom até ao sacrifício, quis chamar a si, para alívio e gozo dos condiscípulos, a conjugação completa de todos estes verbos… Ele sonhou. Ele trabalhou. Ele sofreu. Ele amou. Mas sobretudo amou. Amou a sua Arte. Amou o seu Lar. Amou a sua Pátria. Nesta trilogia de Amor é que vive a sua obra e viverá para sempre a sua Glória … Mas esta Glória é tão grande; é tão vasta e tão intensa a claridade que em torno ela derrama, a flux, que o mais tênue e o mais esbatido dos seus raios, ao desprender-se do foco refulgente e antes de diluir-se, impa1pável e despercebido, na diáfana serenidade do éter infinitamente azul, desgarrou… e, Iene e benfazejo como o próprio Nume tutelar donde partira, veio esmaiar sobre a cabeça fatigada e sonolenta do mais remisso – porque mais tardio – dos seus devotos, Ao seu lume e ao seu calor, senti-me acordar… Levantei-me. Vim… Vim, na confusão que ainda me conturba o ânimo, no deslumbramento que ainda me cega os olhos – guiado pela mão indefectivelmente amiga de Veiga Miranda, alto e generoso embaixador da vossa soberana munificência. E cheguei. Vou sentar-me ao vosso convívio. Quero participar da comunhão substancial do vosso espírito – vínculo religioso, inquebrantável, que prende as nossas opiniões divergentes e unifica as nossas atividades dispersas. Aqui, ao contato milagroso da vossa imortalidade e da imortalidade do nosso Instituto, convenço-me, senhores acadêmicos e confrades, de que, já agora, também eu não morrerei de todo, nem tão depressa. E – paupérrimo na penúria dos meus cabedais, mas imensamente rico na composse dos vossos tesouros – prometo dar-vos o pouco que me resta, em troca do muito que me dais.
(Trecho final de Altino Arantes Marques, na sua posse de como sucessor de Amadeu Amaral, na Academia Paulista de Letras, 1930).