Opinião

Artigo – O Cérebro é plástico

por Adriana Fóz
Educadora, Psicopedagoga, Neuropsicóloga e autora do livro “A Cura do Cérebro”
Facebook – Adriana Fóz

“Foi marcante e doloroso aquele dia em que eu retornei para casa depois de quase um mês de hospital, entre UTI, semi-UTI e quarto. Quase um mês desde o momento em que minha médica me deu a notícia na sala de ressonância:

– Seu cérebro está sangrando… Você está tendo um derrame – dissera-me ela, com voz embargada e atônita, os olhos em lágrimas” (trecho do livro A cura do cérebro).

Como alguém com apenas 32 anos de idade conceberia a ideia de ter um derrame cerebral?

O derrame havia afetado algumas áreas do meu cérebro, dentre elas a região hipocampal, núcleos da base e região do tálamo, epicentro do meu terremoto neurológico. E para ser mais precisa: porção posterior do tálamo, parte da radiação da cápsula interna e extensão ao hipotálamo esquerdo, além do globo pálido. Fazendo uma analogia com o computador, meu processador central e meu HD haviam sofrido uma pane. Conhecimentos, palavras, lembranças, nomes de pessoas conhecidas e tudo mais que estavam armazenados na memória continuavam ali; entretanto, o meu cérebro não fazia as conexões necessárias para recuperar nem dar sentido às informações.

Assim como quando vimos um rosto conhecido e não conseguimos nos recordar a quem pertence, eu tinha a sensação de saber que sabia, mas não conseguia dar sentido àquelas lembranças. Como um quebra-cabeça desmontado − com as peças espalhadas, algumas faltantes −, precisava me remontar, peça por peça. De que forma e por onde começar?

Eu pensava: “Meu Deus, o que vai ser de mim? Será que minha vida vai acabar desse jeito? Nunca mais voltarei a ser a mesma? Como posso ser eu novamente?” Seria tão bom se para isso houvesse um modelo pronto para seguir, tipo o kit: “Faça você mesma suas unhas de porcelana: passo 1, passo 2, passo 3…”. Melhor ainda se esse modelo tivesse uma garantia tal como: “Se você não ficar satisfeita, devolvemos seu dinheiro”… Infelizmente, a vida não é assim. Não havia modelos nem manuais de instrução a me explicarem como me remontar.

Iniciava-se ali uma fase de muito sofrimento; e por outro lado, de surpresas e aprendizado. Hoje, estou recuperada, com sequelas mínimas. Milagre? Destino? Força de vontade?

O fato é: restabeleci quase toda a sensibilidade e praticamente todo o controle dos movimentos do lado direito do meu corpo. Voltei a andar e correr – aliás, corro melhor do que ando! Vai se decifrar os surpreendentes caminhos do cérebro e da vida. Recuperei as habilidades intelectuais, conhecimentos, assim como grande parte de minhas memórias. É bem verdade que algumas lembranças não resgatei nem a fórceps e outras sequer desejo recobrar. Mas sim, voltei a ser quem era e ainda, no meu entender, bem melhor. De educadora e psicopedagoga me tornei oficialmente neuropsicóloga e ainda mais “neurocuriosa”! Da rigidez das dificuldades passei a exercitar muito além da flexibilidade.

Minha reabilitação surpreende a maioria das pessoas, já que é tão usual que as vítimas de derrames fiquem com sequelas para o resto da vida. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde − outubro de 2008), as doenças cardiovasculares são a primeira causa de mortes no mundo, da mesma forma que os derrames cerebrais são os fatores determinantes de incapacitação e redução da qualidade de vida. No Brasil, desde a década de 1990, as doenças cerebrovasculares, especialmente AVCs, são a principal causa de morte (Fonte: OMS e site Dráuzio Varella).

Mas longe de ser um milagre, em meu caso particular, a recuperação foi possível devido a uma capacidade natural do cérebro, chamada “plasticidade cerebral”.

O que faz essa tal plasticidade? A plasticidade neural refere-se à capacidade que o Sistema Nervoso Central (S.N.C.) possui em alterar algumas das suas propriedades morfológicas e funcionais em resposta às alterações do ambiente, segundo Oliveira e cols, 2000. Diversas análises dos aspectos plásticos do S.N.C. permitem relacionarmos a vários fatores, tais como a influência do meio ambiente, o estado emocional, o nível cognitivo, dentre outros. Durante muito tempo pensou-se que o cérebro fosse uma estrutura rígida, não “modificável”, e que alterações por lesões estariam fadadas àquela realidade. Porém hoje, por meio de inúmeras pesquisas e estudos de casos, inclusive o meu narrado no livro A Cura do Cérebro, evidenciam uma nova e promissora compreensão desta preciosa máquina de vida.

Para entender um pouco mais sobre a plasticidade cerebral é importante apresentar os três estágios clássicos: (1) após uma lesão, (2) desenvolvimento e (3) aprendizado. No caso de uma lesão cerebral (1), em que um grupo de neurônios é danificado e a pessoa perde a capacidade de realizar determinadas funções, o sistema plástico do cérebro as transfere para um grupo saudável de neurônios, permitindo, por exemplo, sua execução novamente. Ampliando a explicação – uma lesão promove três situações distintas: a) o corpo celular do neurônio foi atingido e ocorre a morte do neurônio(processo irreversível); b) o corpo celular está íntegro mas seu axônio está lesado; c) o neurônio está num estado de excitação diminuído.

São alguns os mecanismos de reparação e reorganização do SNC que podem surgir imediatamente ou durar por anos. A qualidade da reabilitação vai variar de acordo com a gravidade da lesão sofrida, a região cerebral afetada, a rapidez com que a vítima é socorrida, bem como sua idade. O estágio do desenvolvimento (2) insere o próprio processo de maturação desde a fase embrionária até a extra uterina, sofrendo influência dos fatores genéticos e ambientais. Já o estágio da aprendizagem (3) pode ocorrer em qualquer momento da vida, uma vez que toda mudança de comportamento, toda a estimulação insere aprendizado ou ainda re-aprendizados. A prática ou a experiência promovem modificações do mapa cortical, segundo Pascual-Leone e cols. Por exemplo, uma nova atividade aprendida, como tocar violão, reorganizará o mapa cerebral aumentando a flexibilidade da área motora dos dedos ou ainda um dedo indicador de um leitor de Braille terá maior representatividade cortical do que o mesmo dedo contralateral. Logo a aprendizagem também promove reabilitação.

Se essa incrível capacidade de recuperação do cérebro fosse apenas uma esperança para quem sofreu uma lesão neurológica, já seria ótimo. Entretanto, ela é ainda mais maravilhosa e promissora do que você possa imaginar: é a chave para a superação de outras crises que desorganizam nossa existência. É, também, a capacidade essencial para quem deseja viver com mais equilíbrio neste atribulado mundo em constantes transformações, que exige de nós muita flexibilidade para encontrar caminhos alternativos. A isso chamo de plasticidade emocional.

Plasticidade emocional tem como características as habilidades conscientes que podemos otimizar para promover, recuperar ou modificar nosso desempenho. A P.E. é um conjunto de competências que deve ser estimulada para que possamos melhorar nossa performance na vida. Dentre estas: consciência, motivação, criatividade, resiliência, auto-estima, persistência, intuição, empatia, flexibilidade mental, controle de impulsos e treino.

No meu caso, entender que para superar o andar ceifante (aquele andar típico de quem sofreu um AVC, onde a perna faz um semi-circulo para ir adiante) eu precisaria reorganizar minha postura e meu próprio jeito de andar, foi fundamental. Flexibilizar-me e passar a rebolar para andar (rebolar pra valer), iniciar aulas de samba para soltar o quadril, fazer aulas de palhaço para aprender a rir do meu jeito esquisito ”de levar a perna” e aprender ioga foram estruturais na minha plasticidade emocional.

Imagine uma educadora que perde sua faculdade da leitura e escrita? Pois foi o meu caso. Mas fazer das palavras um brinquedo, procurar a poesia dos vocábulos, exercitar ambos os hemisférios cerebrais foram de grande valia para eu reabilitar minha competência lecto-escrita. Resultado disto: três livros de poesia infantil.

Aprender a pintar, a usar diversos materiais para fazer arte, buscar sentido por meio do movimento dos pincéis, do uso das duas mãos, dos dois pés, foi um atalho para recobrar minha sensibilidade táctil e motivacional. Estimular recursos neuro-cognitivos de meu hemisfério direito foram relevantes para refazer caminhos neurais.

Enfim, cada indivíduo irá desenvolver e estimular tais competências emocionais no sentido de uma plasticidade e de acordo com suas possibilidades e limites. O importante é saber e experimentar a realidade de que é possível a superação.

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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