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Clínica de reabilitação oferece terapia com base na afetividade

02/06/2014

Clínica de reabilitação oferece terapia com base na afetividade

Comunidade surgiu para desenvolver um novo modelo de tratamento para dependência química; Bíblia é a única regra de fé entre os internos, afirma diretor
Pastor e psicólogo, Alexandre Jordão criou pesquisa denominada "Abordagem apoiada na afetividade" (Foto: Túlio Darros/O Semanário)
Pastor e psicólogo, Alexandre Jordão criou pesquisa denominada “Abordagem apoiada na afetividade” (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

RAFARD – O pastor Alexandre Jordão, da Igreja Batista Nova Aliança, atua como diretor e capelão no Instituto Terapêutico Nova Aliança. A comunidade, que oferece tratamento a dependentes químicos e alcoólatras – apenas homens maiores de 18 anos –, surgiu para “dar voz” ao projeto de um grupo de pesquisa do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), de Americana, no qual cursou também Psicologia.

Segundo Jordão, faz alguns anos, o governo federal divulgou que de cada 100 pessoas que procuram um serviço terapêutico, duas conseguem se recuperar e, isso apenas durante os dois primeiros anos. Depois, vem a recaída, reduzindo a estatística a zero. “Eu trabalho com jovens há 20 anos, num outro projeto. Lá, de 100 pessoas que entram 80% se recuperam”, conta.

“Eram andarilhos, pessoas que já estavam com o sistema nervoso central comprometido. E estão comigo até hoje. Casaram, tiveram filhos, compraram casas, carros. Então apresentei a eles [à universidade] outra estatística. Com isso, me convidaram para fazer parte do grupo de pesquisa, que visa entender o porquê da ineficácia do projeto terapêutico oferecido no Brasil”, acrescenta o psicólogo.

A partir da realização de testes psicológicos, os estudantes descobriram traços de personalidade e formataram um novo projeto. A pesquisa denominada “Abordagem apoiada na afetividade” considera apenas as qualidades do indivíduo, deixando de lado o que ele tem de ruim. “Isso a sociedade já imprimiu na testa dele.” O objetivo, de acordo com Jordão, é desenvolver o desejo de lutar e fazer com que eles possam ver o que são de verdade. “A gente foca no amor e no carinho”, diz.

Instituto Nova Aliança tem capacidade para atender até 60 homens (Foto: Túlio Darros/O Semanário)
Instituto Nova Aliança tem capacidade para atender até 60 homens (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

O Instituto Nova Aliança, explica o pastor, não trabalha com agressividade, nem com regras. Segundo ele, a maioria das comunidades terapêuticas insere diversas regras nas paredes, as quais “servem apenas para serem quebradas”. Isso porque os dependentes “possuem um traço de personalidade chamado ‘psicoticismo’”, ou seja, “vivem as emoções intensamente, para mais ou para menos, sendo pouco resilientes (não conseguem lidar com frustrações)”.

“Outro dado estatístico diz que de cada dez internos, oito saem no primeiro mês porque se estressam. Uma terapia baseada na agressividade, por meio da punição, faz com que eles queiram ir embora”, explica. Além disso, segundo Jordão, o indivíduo deve querer se internar. “Tive somente três casos aqui que a pessoa foi embora. Mas quando entrou, a gente sabia que não queria vir. Não adianta vir forçada pela família. As portas estão abertas. Ela entra e sai quando quiser.”

Com isso, a estatística divulgada nacionalmente foi derrubada logo na primeira turma de indivíduos estudados. Até hoje, pelo menos 40 pessoas já foram atendidas. “Quando adaptamos o projeto terapêutico e o aplicamos na instituição, provamos que a nova abordagem atende 80% da população de dependentes químicos.” Porém, lembra que ainda não se passaram os dois anos de recuperação, visto que, oficialmente, a comunidade foi fundada em janeiro do ano passado.

“O Brasil precisa de uma abordagem terapêutica, pois a dependência química tornou-se uma calamidade pública. Uma epidemia incurável. Na verdade, o mundo todo está sofrendo com isso. O próprio CID-10 [Classificação Internacional de Doenças] entende o vício das drogas com uma ‘doença incurável e crônica’”, admite o capelão, responsável por cuidar da parte espiritual dos pacientes.

O Instituto

O Instituto Terapêutico Nova Aliança integra um trabalho social ainda maior da Igreja Batista, o Instituto Maida de Desenvolvimento Humano, mantenedor de outros três projetos: as Escolas Kairós, em Guiné Bissau e Senegal, na África; o Centro de Saúde Keru Dund, também em Senegal; e o “Educação para o Esporte e Alfabetização da Língua Inglesa”, em Caucutá, na Índia.

Além de Jordão, a equipe do instituto compreende quatro psicólogos, dois professores de Educação Física, dois técnicos em Dependência Química, um médico e uma pedagoga, bem como cozinheiros, funcionários de serviços gerais, motoristas e oficineiros. Atualmente, a comunidade está na terceira turma, com 21 internos, os quais, de acordo com o pastor, convivem em harmonia num ambiente integrado à natureza.

Bois, porcos, galinhas, aves, cachorros e diversos outros animais compõem um cenário tranquilo e acolhedor, composto ainda por uma horta, campo de futebol, quadra de vôlei de areia, playground, tanque de pesca, piscina, academia e refeitório, com capacidade para acolher até 60 pessoas em recuperação.

Horta compõe ambiente terapêutico da comunidade (Foto: Túlio Darros/O Semanário)
Horta compõe ambiente terapêutico da comunidade (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

No entanto, Alexandre Jordão diz não aceitar mais de 25 internos de uma vez. “Uma família com mais de 25 pessoas dá confusão, são muitas ideias diferentes. O grupo que está aqui hoje sequer discute. É um carinho entre eles. Tem uns que são mais velhos, daí a gente vê um cortando as unhas do outro, porque aquele não consegue abaixar direito. Outros não conseguem lavar roupa porque têm suas limitações, aí um lava a roupa do outro também.”

Após o café da manhã, ele detalha que os pacientes participam de algumas palestras e, em seguida, fazem a laborterapia, das 10h às 12h30, a qual trata da realização de tarefas com funções terapêuticas. Depois, o almoço é servido e os internos têm direito a duas horas de descanso. À tarde, a equipe multidisciplinar inicia a sequência de consultas, oficinas e realiza mais palestras.
Embora idealizada por evangélicos, Jordão explica que a terapia não é baseada em uma única religião. “A facilidade é que o Brasil é um país cristão, e este tem uma única regra de fé, que é a Bíblia. Então, a gente trabalha apenas em cima dessa instrução”, afirma.

Testes

“Nós estamos em busca de um modelo de tratamento para dependência química”, enfatiza o psicólogo a respeito do objetivo principal do Instituto Nova Aliança. Para isso, ele conta que a comunidade desenvolve uma série de testes com os internos, assim como planos-pilotos dos serviços que podem ser oferecidos. Um deles diz respeito a uma república para abrigar aqueles que, depois dos nove meses de tratamento, não têm para onde ir.

“Temos alguns moradores de rua aqui, os quais não podem voltar para fora. Então, penso em fazer uma república numa das casas que possuímos nesse espaço para que eles fiquem. Temos uma horta, um pesqueiro, e essas coisas podem gerar renda para eles. A ideia está pronta, mas não consegui realizá-la ainda, pois há um problema legal com vínculo empregatício”, revela.

O impasse, ressalta, ainda está sendo analisado para evitar que os ex-internos sejam confundidos com funcionários da comunidade, já que estes poderão viver no local livremente e trabalhar onde quiserem.

Outro teste, denominado Grupo de Apoio ao Interno (GAI) consistiu em selecionar indivíduos em recuperação para fazer parte da equipe multidisciplinar. Todavia, o GAI não deu certo, segundo Jordão. “Um cobra o outro e os internos não obedecem ao que é monitor, gerando estresse, uma responsabilidade que eles não têm. Daí, fomos pesquisar lá fora e descobrimos que muitos saem e têm a chamada recaída depois de serem trazidos para trabalhar na equipe.”

A clínica de reabilitação é considerada particular, porém, sem fins lucrativos. O custo mensal de um residente, considerando gastos com equipe técnica, alimentação e eletricidade gira em torno de R$ 2,3 mil. Entretanto, o capelão afirma não haver ninguém que paga esse valor. “Ninguém aqui tem esse dinheiro. É assim: ‘ah, eu posso pagar tanto’”, exemplifica Jordão. “A gente procura saber qual a condição financeira da família, para que ela pague com o que tem para nos ajudar. E a equipe técnica é voluntária. A gente trabalha com o recurso que tem, e o Instituto Maida ‘banca’ a diferença.”

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Depois de 11 internações, adicto em recuperação foi levado à clínica de Rafard pela mãe (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

Questão de sobrevivência

“Eu acredito que, como a maioria, comecei a usar drogas por curiosidade, aos 16 anos. Fumava maconha, ingeria álcool e tomava alguns comprimidos. Estava indo tudo bem, eu tinha o controle. Mas, aos 18 anos entrei na ‘química’, cocaína, e foi aí que as coisas começaram a complicar: pequenos furtos, primeiro dentro de casa, depois passaram a acontecer fora, era uma coisa vergonhosa mesmo, de entrar pelo telhado. Com isso, adquiri 18 processos e fui condenado a dois anos e sete meses de prisão.”

José (nome fictício), 41, conheceu o Instituto Terapêutico Nova Aliança há cerca de três meses, quando a mãe, de 58 anos, disse que tinha ouvido falar a respeito de um lugar diferente daqueles das 11 internações anteriores. “Eu ia por espontânea vontade, mas nunca me senti bem. Em vez de me animarem, me revoltavam ainda mais”, conta.

Ele aponta, também, que as instituições falavam pouco sobre a Bíblia. “Era mais Narcóticos Anônimos, não tinha esse lado com poder superior, no qual você acredita e se coloca abaixo dele.” “E, eu era uma pessoa muito autossuficiente, orgulhosa e egocêntrica, até que chegou num ponto em que novamente olhei para mim e vi que necessitava de uma nova internação. Ao mesmo tempo, voltar àqueles lugares me parecia o fim do mundo”, completa.

O adicto em recuperação recorda que, quando estava a caminho, a mãe o perguntou se ele tinha certeza que queria ir. “Com o coração cortando eu disse: ‘se eu não for eu vou morrer’”.

Em 1993, o rafardense descobriu ser portador do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), consequência da droga injetável. Na época, trabalhava numa empresa de telhas, caixas d’água e placas de cimento, mas foi aposentado devido à falta de informações a respeito da aids. Hoje, ele faz acompanhamento na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Internos produziram cartazes em homenagem às famílias (Foto: Túlio Darros/O Semanário)
Internos produziram cartazes em homenagem às famílias (Foto: Túlio Darros/O Semanário)

Aos 19 anos, terminou um noivado que havia acabado de oficializar, depois de cinco anos de namoro, para ficar com outra moça, a qual viria a ser mãe de suas duas filhas. Hoje, uma tem 21 anos, e a outra, 17. “Elas moram em Capivari. A mais velha é casada e já tenho um neto também, não tem nem um aninho ainda”, diz José.

A esposa, por sua vez, morreu em decorrência da aids. Ela descobriu ser portadora do vírus antes mesmo do marido. “No dia em que minha filha nasceu eu estava preso. Foi aí que minha namorada descobriu o vírus HIV. Ao sair da cadeia,
fiz os exames que confirmaram que eu também era portador”, explica.

Após alguns anos, José desenvolveu tuberculose e chegou a pesar 30 quilos. Em seguida, contraiu meningite e perdeu todos os movimentos do corpo, precisando usar fraldas. Um dia, escutou os médicos falando que aplicariam nele um remédio que poderia não funcionar. Com medo de morrer, disse à mãe: sairia da cama andando. E assim o fez.

“Na segunda-feira, acordei com muita dor nos pés, mas, sentado, segurei no suporte do soro e saí andando. Quando os médicos, as enfermeiras e os outros pacientes viram, começaram a bater palmas”, recorda emocionado. Porém, nem mesmo essa vitória o fez deixar as drogas.

Após o nascimento da segunda filha, a mulher de José, com quem não era casado oficialmente, ficou doente, quase cega. Quando ela morreu, o dependente químico diz ter se aprofundado ainda mais nos vícios, vindo a consumir pedras de crack.

“Passei a andar em bares, favelas, biqueiras, lugares que a gente usava como pontos para fumar. Aqui no interior, era embaixo de uma ponte. Ficava até três dias lá sem comer ou dormir. Só ia para casa tomar banho, trocar de roupa e pegar mais dinheiro. Vivia rodeado de pessoas desprezadas pela sociedade, e eu não era diferente, com exceção de meus pais. Nem sei descrever o tamanho da bondade, da generosidade e do amor que eles têm por mim.”

O irmão de José, 31, também é usuário de crack. Quando tinha apenas 10 anos, acompanhava o aposentado até Campinas, aonde ia para comprar drogas. Ele alega que o pai, 63, só emprestava o carro se ele levasse o irmão junto. “Meu pai tinha um bar de cartas e bocha. Trabalhei um tempo com ele e costumava pedir o carro para jantar. Ele me emprestava desde que eu levasse meu irmão. O problema é que eu não ia jantar”, admite.

Recuperação

Vendo o sol nascer e se pôr em meio às paisagens terapêuticas oferecidas pelo instituto, o adicto em recuperação diz ver a mudança até na família. “Meus pais olham para mim com os sorrisos de orelha a orelha. É gratificante”, afirma. Segundo José, a doença fez com que eles – na função de codependentes – perdessem o prazer nas coisas. “Não saíam mais de casa, nem à casa de parentes.”

“Minha mãe chegou a dizer que meu irmão e eu destruímos a liberdade deles, sem falar na saúde. Eu sinto vontade de chorar quando me lembro de minha mãe e meu pai entrando na galeria da cadeia para me visitar. Imagino a vergonha e a decepção que passaram comigo”, frisa.

Ao contrário da impressão gerada durante o caminho até a clínica, o paciente garante que o tratamento é outro, o carinho é maior. “Até arrepia de falar.” Ex-fumante, diz não acreditar que seria possível largar o cigarro. “Quando eu sair daqui, Deus vai tocar no coração do meu irmão, também”, prevê com esperança.

Sobre a fórmula para criar coragem, sobreviver em meio às inúmeras dependências e, depois de tudo, voltar a viver, o homem de olhos sensivelmente azuis claros, cuja pele é marcada pela luta diária desde a 8ª série do ensino fundamental, revela que os dependentes químicos precisam olhar para trás, a fim de enxergar como estão vivendo no momento.

“Pare e pense, deite na cama e reflita. Tente se lembrar do tempo que não usava drogas. Procure olhar o lado familiar e ver quanta gente você está prejudicando. É uma vida que vai te levar cada vez mais para o fundo. Você está sujeito a ser preso, a levar um tiro, a morrer. É só andar para trás”, aconselha. Segundo ele, o primeiro passo é deixar o orgulho de lado e pedir ajudar.

“Tem muita gente disposta a ajudar pessoas com esse problema. É preciso pedir e aceitar, porque é possível parar, sim. Antes eu falava até para os meus pais: ‘eu gosto de usar’ e, na realidade, eu gostava muito mesmo, mas a consequência que é cruel. Além do mais, dá para sentir prazer em outras coisas, em coisas do bem. Aos poucos, a gente vai aprendendo isso e esquece a necessidade de usar drogas.”

Para o diretor do Instituto Terapêutico Nova Aliança, mais do que auxílio, os adictos precisam de pessoas que os estendam as mãos e ofereçam compreensão e aceitação. “A gente tem que olhar como Deus olha. Ele não julga ninguém e espera sempre o melhor das pessoas. Está na Bíblia: “Não suspeita o mal, mas sempre espera o bem.” (1 Cor, 13) Esse é o caráter de Deus. Então, se Deus que é onisciente e continua acreditando em mim, porque eu não vou fazer isso?”, questiona o pastor.

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Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário
Foto: Túlio Darros/O Semanário

 

Em médio prazo, o Instituto Terapêutico Nova Aliança visa oferecer tratamento 100% gratuito. São as chamadas “vagas sociais”. Para doar, basta entrar em contato com a Central de Doações por meio dos telefones (19) 2146-0391 e 3492-6040, ou por e-mail: [email protected]. Quem tiver interesse em conhecer histórias reais de superação escritas pelos próprios internos pode acessar o blog Águias da Fé. O Instituto fica na estrada vicinal que liga Rafard a Porto Feliz, no bairro Barrocão (antigo Pesqueiro Bicho de Pé).

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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