ArtigosJ.R. Guedes de Oliveira

Cuidar da infância!

(Fragmentos de uma conferência realizada em Ribeirão Preto-SP, em 25.12.1920, nas festividades do Instituto de Proteção à Infância daquela cidade paulista).

Conheço, e não de hoje, a obra magnifica que o Instituto de Proteção á Infância, de Ribeirão Preto, vem realizando, modestamente, valentemente, de alguns anos a esta parte. Conheço o que é preciso haver de tenacidade, de paciência, de tacto, de sacrifício, de todas as formas de energia contida, de coragem concentrada, de virtude íntima, e ao lado disso de desinteresse e de amor, para se meterem ombros a empresa desta índole e deste vulto e, mais ainda, para a manter por tanto tempo e, ainda mais, para de dia em dia aumentá-la… Conheço os tropeços, as dificuldades, os desânimos, as resistências, as mil insídias e as mil agressões do mal e da sorte, que infalivelmente se mesclam ao belo conjunto das forças favoraveis com as quais se pôde contar. Assim, bem podeis imaginar qual seja a minha admiração pelos autores desta obra de bondade e de inteligência. Foi essa admiração que me trouxe a Ribeirão Preto. Não temo ser-vos indelicado, antes espero dar mais forte relevo ás minhas homenagens, dizendo que precisei fazer violência ás minhas comodidades, para me achar hoje em vossa presença. O apelo recebido colheu-me em época de intenso trabalho obrigatório e inadiável e de cansaços longamente acumulados, que andavam por um doce período de repouso, de apartamento e de silêncio. Nestas condições, que poderei dizer-vos, que mereça a pena de ser dito e de ser ouvido, a vós, polido escol de uma cidade opulenta e culta? Mas, diante do apelo insistente, — fosse gentileza, fosse generosidade, — vindo de quem vinha, não me julguei com direito a persistir nas primeiras esquivanças. Abandonei as sugestões melancólicas da fadiga, o antegozo do descanso projetado, o receio de vos vir sacrificar as minhas comodidades apenas para comprometer as vossas… e aqui estou. Venceu a admiração. A admiração dizia-me: “Vai. Não inventes subterfúgios nem pretextos para te furtares. Fazes um sacrifício? Muito maior tem feito quem te chama. Quem te chama é um homem que tem empregado o melhor do seu tempo a espalhar boas obras em redor de si, na pura simplicidade de gesto de um semeador silencioso. Clínico, vive entre as realidades sangrentas do sofrimento humano, a suavizá-las. Quanta tortura e quanto desmaio de corpos e de almas tem desaparecido ao toque das suas mãos benéficas! Filantropo, não se contentou de ser esse dispensador de alívios e de confortos, de esperanças e de sorrisos e quis atacar os venenos da vida nas próprias fontes desta, contribuindo para torna-las mais cristalinas e mais puras. Que esforços, que trabalhos, que penas, que mágoas, que ansiedades não lhe terá custado, dia por dia, essa casa, filha dileta da sua bondade ativa, menina de seus olhos de pai! Esses, sim; é que «são sacrifícios. Ao passo que tu, que tens feito em toda a tua vida senão enegrecer papel, infatigavelmente, loucamente, com frioleiras que não servem senão de agravar o desconcerto do mundo, esporeando outras vaidades adormecidas, suscitando estúpidas rivalidades, dando ocasião, embora involuntariamente, a mil pequenos atritos inúteis e, mais que tudo, prolongando além do que seria justo os ócios estéreis dos teus raros leitores? E queres julgando teres bem merecido o repouso que buscas, fugir ao apelo do batalhador indefesso, que te chama por um momento em meio da peleja, apenas para o ajudares a arredar uma pequena pedra do caminho!”

Muitas são as obras; os estabelecimentos, os serviços que a imaginação fértil dos homens tem inventado, para corrigir e reparar as falhas e os aleijões dos corpos e das almas. Inventaram-se já cem variadas fôrmas de ensino. Inventou-se uma pedagogia complicadíssima. Inventaram-se sistemas penais, várias instancias, tipos e maneiras de tribunal, extensas e minuciosas engrenagens de polícia e de prisões. Inventaram-se hospitais, asilos, abrigos, manicômios, leprosarias, dispensários. Formidável a soma de riqueza que se consome nesse imenso conjunto. Mais formidável ainda a soma de energias morais que se transfundem nesse mundo de fabricas e de atividades. Com tudo, quanto mais crescem e mais se multiplicam as leis e as instituições, mais alto se erguem as paredes das cadeias, mais vastos os pavilhões de enfermarias, mais complicadas, mais perfeitas e mais abundantes as escolas; quanto mais formigam os profetas e reformadores, mais legiferam os legistas, mais sentenciam os pedagogos, mais trovejam os censores, tanto mais triste, mais atormentada, mais louca, mais horrível a vida que estua e estruge em redor de nós, mais cruel, mais trágica, mais supliciante a incompreensão, o desacordo, a odiosidade, a fúria sem tréguas e sem diversão, em que se estorcem e rodam, rebolindo e raivando, urrando e chorando, os homens ébrios de dor e de rancor, de vicio e de iniquidade! É que de tudo se tem cuidado, menos de purificar as fontes. A agua que de lá vem já vem contaminada, e mais gravemente se contamina depois. Cuidemos das fontes! Cuidemos da criança!

Contendem moralistas, filósofos, economistas, educadores sobre as causas de toda essa incurável miséria. Todos devem ter a sua parte de razão quando denunciam a irreligiosidade, o pauperismo, os defeitos das leis, as falhas da educação, as deficiências do ensino. Mas, além de tudo isso, e talvez na raiz de tudo isso estão as reservas de saúde cada vez mais fracas e mais ameaçadas, estão as teses, as taras, as torturas e as insuficiências que se acumulam. A maior parte dos males do mundo vem das más tendenciais e das más paixões. Ora, o predomínio irrefreado das tendências perversas é, em grande parte, imputável a causas anatômicas e fisiológicas bem conhecidas e susceptíveis de correção. E o influxo das paixões malignas é mais poderoso nos indivíduos que, por predisposições orgânicas e por motivos de saúde, não possuem aquela força, que é a superioridade e a glória dos homens harmoniosos e bons, de graduar, sofrear e suavizar a violência das rajadas que o instinto sopra.

José Bonifácio, o velho, notou, com perspicácia, que nós temos a particularidade de detestar “novidades de prática”, mas abraçamos logo “as especulativas, sejam quais forem”. Grande verdade. E’ claro o nosso pendor para fazer fogos de artificio de frases e para agitar ideias no vácuo; e, em regra, nos servimos, nesses exercícios, das últimas novidades estrangeiras que os livros, os jornais, ou o próprio telégrafo nos transmite. Não menos clara é a nossa incapacidade, pode-se dizer, com pouco exagero, absoluta, para avançar até as consequências práticas que nossas pretensas convicções pareceriam tornar imprescindíveis. Que quer dizer isto? Quer dizer que, na realidade, não costumamos ter convicções. A convicção real tende ao ato, como a água tende a deslizar, levada pelo próprio peso; manifesta-se, como luz através de um corpo transparente, nas atitudes predominantes e nas atividades habituais do indivíduo. Nós temos o vício bárbaro de brincar com as ideias, recusando compreender que as ideias não são propriamente coisas de passatempo e de brincadeira. Enfeitamo-nos com elas, de passagem, segundo a moda, ou o capricho, — mais ou menos como o selvagem que se adorna com as missangas e os botões, as pedras preciosas e os cacos de vidro que encontra por entre despojos de náufragos dados à costa, sem admitir que nada disso lhe possa trazer a mínima espécie de compromisso. É tempo de reagirmos contra essas enfermidades do nosso espirito. Mas, para que a reação se opere (ela deve operar-se por si mesma) nada melhor do que o efeito sereno e maravilhoso de um grande exemplo. Mais do que todos os tratados, todas as dissertações, todos os livros, todos os discursos, debates e parlendas, valeria a irradiação de um belo e imponente exemplo concreto.

Porque não há de ser o vosso Ribeirão Preto essa localidade venturosa, esse foco do bom exemplo, esse modelo magnífico, esse iniciador glorioso? Desde alguns anos que esta cidade goza a justa fama de ser no Estado de S. Paulo uma das mais avançadas, sendo ha já muito tempo uma das mais prosperas. Tudo lhe indica o papel preponderante e admirável que se acaba de esboçar. E, para começar pelo melhor e pelo mais fácil, tome a cidade sob a sua guarda, como coisa sua, como a mais preciosa das suas joias, este instituto benemérito. Nada poupe, nada negue, nada retarde, em se tratando de ampliar, de aperfeiçoar e de embelezar essa casa. Cresça ela em grandeza e em esplendor! Embebam-se as suas fundações muito a dentro deste solo, ergam-se as suas flechas ás maiores alturas no espaço, deite ela ramificações que abracem todos os poderes políticos e sociais da cidade e entrem por todos os lares e avancem por fábricas e fazendas, e enfim — árvore magnífica, sempre verde — tire de toda a parte alentos de vida e por toda a parte derrame os benefícios da sua exuberância feliz! Que à sua sombra se abrigue um dia toda a infância desta terra, cantando e rindo, e seja toda essa infância que ri e canta de concerto, na alegria da saúde, da paz e da bondade, a maior das riquezas, a suprema ventura e a ufania mais justa da cidade, tornada opulenta, sabia e dominadora pelo bem que fez.

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