Opinião

Encontros em Capivari

A convite do escritor José Roberto Guedes de Oliveira, para assistir à entrega dos originais do livro Alguns Ensaios & Perfis, dirigi-me, em companhia de meu filho David Alexandre, à bela e dinâmica Indaiatuba e fomos recebidos com a afabilidade do paulista interiorano pelo meu amigo e Sra. Guedes de Oliveira.

Esta logo nos encantou pelo seu finíssimo trato e acolhimento. Dali, no dia seguinte, iríamos a Capivari, a menos de uma hora de táxi.

Tendo morado faz mais de meio século em São Paulo, onde iniciaria a minha vida no intrincado mundo do Direito, tinha estado em algumas pequenas cidades do interior paulista, de que nunca me esqueci. Um banho de paz e ordem, beleza e prosperidade.

Não conhecia Capivari, a não ser como ponto de referência com as belas letras. Uma cidadezinha sonolenta e decadente, parece que tirada das páginas encantadas de Godofredo Rangel no seu romance Gente Ociosa, lugar onde nada acontece, o sol queima, uma brisa suave sacode as folhas das árvores e os moradores dormitam; ou até parecia uma daquelas Cidades Mortas, de Monteiro Lobato. Penso também que em Capivari nada acontece, salvo os poucos carros que circulam, quase ninguém pelas ruas, que senti alívio, comentando com meu filho sobre a quietude do lugar que é um repouso para quem sai deste formigueiro de turistas e milhares de carros, em um trânsito caótico e deseducado da Ilha da Magia. É um velho Brasil que parece descansar, sonhar, amar.

E por uma associação de ideias, lembrei a visita que fiz, faz anos em Portugal, a Vilarinho da Samardã, o lugar onde Camilo Castelo Branco viveu os dias inquietos de sua adolescência. Fazendo parte da grande e rica região de Piracicaba, Capivari, a 108 km da capital, segundo os entendidos na língua tupi, viria das palavras Kapibara+ÿ, rio das capivaras, tem uma população de 55.768 habitantes em uma superfície de 322,878 km, de boa extensão, portanto, e está a 675 metros acima do nível do mar o que indica, sendo clima subtropical, que os invernos ali devem de ser se não frios, mas bem frescos.

As pessoas parecem tranquilas e sem pressa e para quem sai do extremo Sul, a quase total ausência de pessoas loiras e de olhos claros, gente simpática, sim, mas tipos bem mais nossos, de cabelos pretos e pele morena. Mas a cidadezinha adormecida tem uma história movimentada e de muita importância nos dias do Império, pois chegou a ser visitada pelo maior dos governantes que o País jamais teve, o velho e magnânimo Pedro II, de augusta e eterna memória. Por sinal, as pessoas mostram, orgulhosas, a casa onde ele se hospedou com a Imperatriz.

Até hoje causa-me surpresa pelo número de bons escritores ali nascidos. Teve um grande número de personalidades que ali nasceram, alguns dos grandes poetas paulistas de nomeada, como Amadeu Amaral e Rodrigues de Abreu, conhecidos e aplaudidos pelos estudiosos da Literatura Brasileira de fins do século XIX e princípios do século XX.

E fato curioso que poucos sabem: o mais conhecido romancista naturalista do País, o discípulo de Zola, viveu e ensinou em Capivari e dele contam algumas estórias do seu temperamento agressivo e até mesmo violento, como conta Carlos Lopes de Mattos em Vida, Paixão e Poesia de Rodrigues de Abreu, a mais minuciosa das biografias do poeta de Casa Destelhada.

Existe a casa onde ele viveu, grande, bonita e onde hoje funciona um restaurante e pizzaria. Vale ressaltar que não existe qualquer placa comemorativa do polemista das Cartas Sertanejas e Procelárias, republicano fanático e injusto, e o romancista escandaloso de A Carne, romance que chocou a então sociedade brasileira, pudica e recatada.

Hoje a paixão carnal de Lenita e o romance serôdio de Barbosa, seria quase um romance cor-de-rosa para adolescentes… Júlio Ribeiro foi um bom escritor, um dos melhores gramáticos que tivemos, e um trabalhador intelectual admirável, que escrevia estupendamente a nossa língua, professor de meninos em colégios da cidade.

E viveu ali, em Capivari. Guedes, já muito antes, falara-me entusiasmado da antiga moradia do escritor e eu tive muita curiosidade em conhecê-la. Infelizmente estava fechada quando por lá passamos e, na volta, já aberta para atendimento ao público, não havia mais tempo.

Outra celebridade da cidade foi Amadeu Amaral, poeta e prosador dos melhores e que chegou à Academia Brasileira de Letras, quando ainda era sumamente honroso fazer parte dos seus quadros e acenar para uma pretensa “imortalidade”…

Guedes de Oliveira, escritor multifacetado, poeta premiado em Espanha, crítico e biógrafo, é organizador da obra esquecida de inúmeros escritores que, sem a pena generosa e amiga do meu acolhedor em Indaiatuba, seriam definitivamente esquecidos. Autor de obra vastíssima e variada, o amigo Guedes é também… capivariano, com o que se completa, muito bem, o ciclo. E dos que sentem justificado orgulho da terra natal, que louva como pode, através de artigos, estudos monográficos e antologias dos que ali nasceram ou viveram, e engrandeceram Capivari. Mas acredito que o trunfo maior desse homem bem humorado e afável, que fala das coisas do passado da sua região e da sua bela cidade natal, é ter dado ao Brasil uma série de investigações sérias, fruto da paciência do investigador nato, sobre a grande e dolorosa figura do poeta Rodrigues de Abreu, o autor melancólico de Casa Destelhada e A Sala dos Passos Perdidos, ainda não conhecido no País como deveria ser em sã justiça, em um país onde soberbas nulidades são lidas e estudadas e reeditadas enquanto Rodrigues de Abreu já anda meio apagado.

Ou pelo menos, não como deveria sê-lo. Mas Guedes deu o sinal de partida e em muitos artigos e ensaios, e organização das obras esquecidas, tem dado o grito de alerta para a obra do poeta não caia no esquecimento, ele que morreu tão jovem, quando apenas despontava para a fugaz glória literária. Sem querer lisonjear o cronista leve e atraente das Crônicas e Outros Bichos, é que ele deu prosseguimento ao que o inventor – na sua lídima significação etimológica – de Rodrigues de Abreu, este fantástico e generoso Silveira Bueno (coisa rara entre intelectuais brasileiros: não sentia inveja e proclamava o mérito de quem o possuía!). E o magnífico poeta aí está ao alcance das almas amantes da Poesia.

Ah, antes de seguir, lembro que Capivari não foi muito generosa para com Rodrigues de Abreu, diz Lopes de Mattos no seu acima citado livro e à sua partida, nem depois, pouco lhe concedeu (leia-se, entre outros, o cap. “Um grande poeta numa pequena cidade”, de p.125 e seguintes). É sempre assim.

Em Capivari, sombria e arborizada, uma cidadezinha bucólica e bonita, com antigos prédios do século XIX, nem todos bem conservados, fomos à casa do Professor João De Simoni Soderini Ferracciù, fascinante causeur, que empatando com David, outro admirável causeur, aligeirou e encheu de alegria a nossa jornada, passando momentos agradáveis, primeiramente visitando a sua belíssima e ampla casa de campo e tendo o prazer de cumprimentar a sra. Soderini Ferracciù quem, como o marido, não podia ser mais gentil.

Como Guedes prometera, houve provação de cachaça envelhecida. Ferracciù, de velha estirpe condal do sul de Itália, recebe magnificamente, mostrou-nos a sua pinacoteca de deixar qualquer um indisfarçadamente invejoso e levou-nos, a seguir, a provar a cachaça que fabrica, e provamos várias, de vária data, de “olor exquisito”, como dizem os espanhóis, ou seja, de buquê fragrante, sempre com os comentários alegres e jocosos do Guedes, cujo bom humor constante disputava primazia com o David e o Ferracciù. Nem sei quantas foram as “provas”, que receei depois de tantas, passar a falar hebraico com os amigos… Mas é cachaça tão boa, tão bem refinada que nem de longe deixa o bebedor em má situação. Capivari, esta querida Capivari (e adrede uso esta, pois ela está bem perto de mim e do meu afeto!

O uso vernáculo do essa far-me-ia distante de um lugar tão querido, o que não desejo). E terminamos a nossa tarde em Vila Raffard, com uma peixada sem defeito, vinho modesto de safra recente, mas que soube como o melhor Bourgogne do mundo.

O moço trouxe um cabernet sauvignon como se fora o merlot, de que tanto gosto. Fingi cortesmente que sim, era um sauvignon, porque com essa gente tão fina e boa do lugar, quaisquer demonstrações de connaissance de vinho seria uma grosseria, imerecida como é imerecida toda grosseria e uma pedanteria desnecessária.

Ai, o pedantismo, santo Deus!, como cansa e como irrita! Enquanto conversava com Ferracciù, ouvi-lhe, em excelente italiano, tercetos de Dante. Ele possui fluência na língua de seus pais. Imagine-se: La Divina Commedia em uma peixada bem brasileira entre amigos e conhecidos de momento que disputavam os livros do Guedes quase a fazer fila. Isto sem falar de uma bela moça morena que veio cumprimentar o anfitrião e comentou sobre as excelências do peixe de Raffard, com o que todos concordamos que ótimo. Também, com tal indagadora, quem em sã consciência teria coragem de dizer o contrário?

Em Indaiatuba, guiados pelo infatigável e generoso Guedes, visitamos a prefeitura, belo edifício de causar admiração a qualquer municipalidade. O prefeito não se encontrava em São Paulo. Havia viajado a Brasília. Fomos recebidos por um funcionário quem, gentilmente, conversou conosco, não sem antes fazer-nos esperar nada menos do que cinquenta e sete minutos. Para mim, que sou fanático pela pontualidade e correção, aquilo não foi nada agradável.

Disse-nos depois que tratava de assuntos urgentes da prefeitura, mas eu vim da burocracia esperta e maliciosa do Estado Nacional. A mim ninguém engana: ele agiu exatamente como agiam os senhores desembargadores quando queriam dar-se ares de importância para com advogados, promotores e magistrados! Esqueciam-se os pamonhas que receber sur-le-champ não só os elevaria aos olhos do visitante que lhes vinham apenas apresentar cumprimentos e que deles não precisavam para nada, mas deixariam uma impressão de cortesia e nobreza a quem os visitava.

Ai, Deus meu! Eis o mal de haver muito vivido e muito viajado: nada passa despercebido. E relembro um caso, que se poderia chamar de anedótico na mais castiça das suas acepções, quando, em nome da World AntiCommunist League, eu teria encontro com o Presidente vitalício Ferdinand Edralin Marcos, das Filipinas, fui recebido no Malacañang Palace exatamente na hora apontada, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.

Um gesto de elegância e respeito para com o visitante que, tantos anos depois, relembra o injustiçado Presidente com admiração e aqui narra o episódio que a ninguém certamente interessa, mas que serve para mostrar que os grandes são sempre grandes até mesmo nos menores gestos! Seja como for, o moço pagou-nos a longa, longuíssima e deselegante espera, com boa conversação.

E lembro desmaliciosamente umas palavras santas retiradas do Pirké Abhot, o profundo livro da Ética dos Pais dos velhos rabinos do passado quem ensinavam, generosamente, com admirável sensibilidade e profundidade, que se deve receber a todos com afabilidade e amabilidade ׃ יפות ם פני בסבר ם האד כל את . מקבל . וחוי. E essa gente sabia o que dizia, parece-me. Eu, pessoalmente, pobre de mim, sempre me valho deles todas as vezes em que me vejo em alguma entalada e, na maioria dos casos dá certo…Para isto servem os sábios! E os rabinos! Penso que essa gente de tanto ler e praticar o que ensinavam, até que ajudam… E ajudou!

E depois de todas estas andanças e “provações”, o retorno à bela e rica Indaiatuba onde Ana Maria, a querida Sra. Guedes de Oliveira, nos recebe com uma bela janta e, novamente, para este escrevinhador apreciador do bom vinho, aí sim, bom cabernet e conversação, de que participaram a netinha do casal, tão novinha e já boa no taekwondo, seu genro e a encantadora filha dos Guedes, Fernanda quem, boa entendida na música dos anos 80 encontrou no David um bom entendedor.

Se já gostava de São Paulo, onde vivi e trabalhei, pela bondade da sua gente, quando recém-casado com aquela que por longos cinquenta e sete anos foi o meu anjo protetor e pessoa a quem tudo devo na vida, mais se confirma com este encontro a gentileza, dinamismo, acolhimento dessa gente que faz o País andar, malgrado a má vontade, felonia, perversidade dos bandidos esquerdistas que se aboletaram no Poder e querem destruir a nossa Nacionalidade, pelo poder da intriga e da mentira!

E daqui deixo um simpático adeus a Capivari e sua gente, na pessoa de José Roberto Guedes de Oliveira.
Florianópolis, 16/18 de novembro de 2019.

[1] Mattos, Carlos Lopes de. Vida, Paixão e Poesia de Rodrigues de Abreu. Capivari: Gráf. Ed. do Lar/ABC do Interior, 1986. 237p.  Nesta obra, mal escrita, com péssima metodologia científica, mas rica de dados e com muito carinho pelo biografado, autêntica homenagem ao infausto e excelente poeta, o autor narra incidente curioso acerca de Júlio Ribeiro, que espanta o leitor de hoje em dia: que cansado de pedir atenção dos alunos, o gramático ilustre e acatado pega do revólver e, em atitude agressiva, dá uns tiros “alvejando o pacífico forro da sala de aula…” – p.20.  Brito Broca não deixa por menos a respeito do temperamento explosivo do escritor em incidente com um ministro se colega. Era um destrambelhado! Não sei se há alguma placa comemorativa a Júlio Ribeiro diante da casa onde morou. É uma honra para Capivari ter tido como seu morador um escritor do naipe do romancista de O Padre Belchior de Pontes. Se não há, vai daqui deste frio Sul brasileiro uma sugestão aos vereadores e ao prefeito: que se afixe a placa! Será uma honraria não apenas para um grande escritor, mas para a administração da cidade!

ARTIGO escrito por professor Newton Sabbá Guimarães.
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do jornal. São de inteira responsabilidade de seus autores.

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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