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Menina

“Não vou contar onde nasci, pois se nem mamãe sabe, talvez não fique bem eu falar em público.

Mas uma coisa eu posso dizer: vim de um sítio. Foi quando a situação ficou precária que meu antigo mestre resolveu me abandonar. Mas o que eu podia fazer? Várias vezes ele me pegou roubando aquela comida de aspecto estranho e mal cheiroso dos porquinhos do sítio, mas ele nunca se perguntou o porquê de eu fazê-lo. Isso mesmo. Para vocês, humanos, nós cães não pensamos o suficiente no que fazemos, não agimos racionalmente. Acham que apenas gostamos de praticar certas coisas como latir para motos, rasgar um saquinho de lixo, ou cavar buracos para guardarmos nossas coisas. Mas é aí que vocês se enganam, e por isso, pedi a mamãe que deixasse eu contar minha história esta semana, para quem sabe assim alguns de vocês não comecem a enxergar melhor os animais, não só os de estimação, como todos aqueles que têm sofrido por falta da compreensão do homem.

Lembro como se fosse ontem. Meu antigo mestre me deixou naquele canil recheado de cães, me acusando de “roubar”, isso mesmo, “roubar”, a comida daquelas criaturas de rabinho em S, que não fazem nada senão roncar e se jogar na lama. Segundo ele, eu, caçadora e esperta como sou, poderia acabar morrendo, pois os bichinhos rosados eram duas vezes o meu tamanho e poderiam se ofender com meus avanços em suas refeições. Dá para acreditar? A princípio pensei que seria só mais um passeio, afinal, quantas vezes eu já havia saído de carro, não é? Mas, ledo engano. Fui deixada ali a ver navios, a mercê daquele grupo completamente misturado de cães. Haviam os abandonados, os filhotinhos chorões, até alguns de raça, que com seu jeito esnobe sempre eram os mais escolhidos para adoção. Haviam também aqueles vira-latas chatos (sou meio vira-lata também, mas ninguém precisa saber), que não cansavam de latir e uivar por qualquer barulhinho. A realidade era uma só: eu estava com medo. Para ser sincera, acho que todos ali estavam. Medo de não ser adotado, medo de ficar dodói e chegar o fim sem ter a chance de se despedir dos outros. Medo até mesmo de ser adotado, porém por algum mestre cruel e malvado, que não daria comida ou qualquer conforto necessário. Ali, fiquei perdida. Tínhamos água e ração, mas eu estava em meio a estranhos. Não conhecia ninguém, não conhecia o lugar…

A única que me dava certa confiança era aquela humana loira, que de vez em quando vinha nos visitar, porque de resto…

Mas continuemos minha cãobiografia. Já se completavam três dias que eu havia me tornado apenas uma cadelinha peluda à procura de um esconderijo. Andava de um canil para outro meio confusa, pois já havia entendido, conforme me disseram os outros cães, que meu antigo mestre não voltaria. Estava conformada com minha solidão, pois mesmo os humanos que vinham em busca de um cãozinho, sempre procuravam os maiores, mais bravos, ou então os filhotinhos, fofinhos e cheirando a leite. Mas foi aí que elas apareceram. Duas humanas, uma já de cabelos brancos, outra nem tanto. Correram os olhos por todas as alas do canil, e os candidatos a serem escolhidos já se colocaram de prontidão. Latiam, pulavam, choravam. Fiquei ali no meu cantinho, até que vi um dedo apontar em minha direção. No mesmo momento entrei em pânico. Em tão pouco tempo, como poderiam querer me adotar? Além do mais, quem eram aquelas pessoas? E se fossem me abandonar assim como meu antigo mestre? E se eu não fosse bem tratada? Ah, não perdi tempo. Me encolhi e fui fugindo por entre os outros e, para minha sorte, percebi que foram embora. Achei que tudo estava bem de novo (se é que era possível), quando, no dia seguinte, uma das humanas reapareceu, porém dessa vez com seu filhote. Era uma humana jovem, assim como eu. As duas olharam novamente pelos canis, apontando para lá e para cá. O show dos outros cãezinhos começou de novo mas, quando dei por mim, era na minha direção que novamente apontavam. Recomecei minha fuga, mas daquela vez sem resultados. A humana loira que sempre nos visitava correu atrás de mim e com carinho, me retirou de lá. E mal sabia eu que minha história só estava começando.

Hoje, com meus onze aninhos, me sinto orgulhosa em dizer que todo aquele trauma de ser abandonada se foi. Aquela família me deu um lar confortável, me deu comida e me deu aquilo que todo bichinho mais deseja: amor. E não só isso, ao chegar à casa nova, descobriram que eu esperava filhotinhos. Cuidaram de mim e todos nasceram saudáveis. Ganhei um nome um tanto diferente, mas hoje entendo o porquê. Me chamo Menina, talvez por falta de inspiração na época, mas hoje sinto que é por ter me tornado da família. Assim como me adotaram, eu as adotei. Dei meus melhores passeios, comi minhas melhores refeições e tirei as melhores sonecas.

A humana mais nova, hoje a quem chamo de mamãe, vi crescer, namorar e casar. Vivo com ela atualmente e ainda acabei por ganhar um papai também. Por isso, não só como bichinho de estimação, mas como uma verdadeira “menina”, peço de coração a todos os humanos: Não nos abandonem. Podemos não ver as coisas como vocês, não entender como vocês. Podemos dar trabalho às vezes, ou até mesmo perdermos a paciência com certas brincadeiras. Mas acima de tudo, nós temos um coraçãozinho batendo, assim como qualquer um. Um coração que fica horas esperando pela chegada de vocês em casa. Um rabinho (no caso de nós, cães), que não consegue conter a felicidade somente por receber um afago nas orelhas. Gostamos de ter alguém a quem obedecer, mas só o fazemos por um único motivo: respeito. Em nome não só de todos os cães, mas de todos os animais, imploro: respeitem-nos, amem-nos. Podem ter certeza, devolveremos tudo em dobro.”

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Sara Figueiredo (Foto: Arquivo pessoal)

Por Sara Figueiredo, estudante de Letras Português/Inglês. Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do jornal. São de inteira responsabilidade de seus autores.

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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