Menotti Del Picchia
Na manhã encoberta pela poeira líquida do chuvisco, uma manhã de enterro – os amigos, quantos amigos! Levaram ao cemitério Amadeu Amaral.
Lembrei-me de uma tarde triste, na qual Amadeu estava conosco. Então éramos meia dúzia. Íamos entregar morto, à imortalidade, Francisca Júlia, a maior poetisa da nossa terra. Não acompanhava a urna da criadora dos “Centauros” a fanfarra e o préstito convencional que põe uma mascarada de pompa e de luxo nos enterros dos potentados. Era uma cauda minguada e melancólica de admiradores daquela grande luz extinta.
Ontem foi a vez de Amadeu. Amadeu, além de um grande artista, era um bom. Seu gênio poético talvez não reunisse em torno do seu ataúde tanta gente. Pensamos mais em coisas terrenas, que nas criações mágicas da beleza. Mas a bondade daquele coração radicará a si milhares de afetos. É por isso que, sob a chuva, naquela ladeira áspera da Rua Bela Cintra, derrapando nos paralelepípedos molhados, centenas de autos identificavam a casa onde morrera o Poeta. Flores em profusão. Por tudo tristeza.
Quando eu estava no mato, plantando café e devorando bibliotecas, a glória de Amadeu refulgia ao lado de Vicente de Carvalho e Batista Cepellos. Eu, mesmo de longe, sentia deslumbrarem-se-me as pupilas ao contemplá-la, de tão clara. As musas atravessaram os carreiros dos cafezais e entraram na casa da fazenda. Recebi-as, festivo. E meu primeiro poema nasceu ali, bem no coração da terra brasileira, áspero e juvenil, latejando o próprio sangue da minha mocidade.
Quando ele conheceu o mundo, todos os seus inimigos – que nasceram nesse dia -escolheram as melhores pedras para lapidá-lo. Solitária e heroica, ergueu-se, então, a voz de Amadeu Amaral. Sobre o meu poema escrevia o mestre um dos seus mais belos sonetos.
A mata iluminou-se Cada pé de café foi um facho. As estrelas desceram mais para iluminar a terra. Essa poesia de Amadeu era como a mão de um mágico que houvesse acendido fogueiras e sóis no meu caminho. Minha confiança cantava em cada rima do Poeta. O desânimo sumiu-se e, com uma energia nova, retomei a faina criadora.
Desse gesto – feito de elegância e de beleza – nasceu minha gratidão por Amadeu Amaral.
Jungi minha alegria aos triunfos sucessivos do Artista. Vi-o subir glorioso, taciturno e bom. Culto e sóbrio, sem vaidades e sem ilusões, talvez um pouco acético ou talvez excessivamente crente, Amadeu jamais teve a impressão exata da sua glória e do seu prestígio. Sereno e honrado, caminhou curvo sob seu destino de trabalhador. Não reuniu outra fortuna que as das dedicações que soube criar. Não almejou outra glória que a do trabalho exaustivo e silencioso. Até rolar morto manteve-se na trincheira, lutando, trabalhando.
Dele se pode dizer o que disse o poeta americano: “não foi a espada que lhe caiu da mão; foi a mão, que caiu da espada”.
Politicamente, sempre fomos adversários. Nossa amizade, aliás discreta, subtilmente intelectual, teve a unidade integral de uma afinidade de espíritos. Antagonistas quanto a credos literários, jamais por ele foi menor minha admiração.
Amadeu era fiel ao seu tempo e às suas ideias. Tinha a coerência dos espíritos profundos. Não combatia, porém, com a intransigência que só é peculiar aos medíocres, a audácia conquistadora das fórmulas novas. Estimulava-as com seus aplausos. Via nelas a vida caminhando.
Mas Amadeu era, sob sua máscara serena e sorridente, um sofredor. A angústia havia tornado longínquos seus olhos metálicos e profundos. Na sua voz havia uma mistura de cordura e de ironia. Se lia um seu trabalho – sempre magistral – fazia-o com o pudor e o ceticismo de um incontentado. Houve sempre nele um desequilíbrio íntimo, feito de insatisfação, entre sua visão iluminada e profunda da beleza e a impossibilidade material da sua representação exterior. Amadeu era sempre mais do que foi. Crítico raciocinante e agudo, via seu mundo introspectivo morrer ao plasticizar-se. Daí, essa frieza hierática que se pode atribuir à sua obra. A alma cálida das suas criações não desertará dessa forma impassível; ficará presa ao seu espírito, dentro desse sentido universal de beleza que a gente adivinhava ser a alegria e tormento do criador. Amadeu tinha ciúme ou pudor de entremostrar esse mundo extraordinário. Guardava-o para a volúpia atenciosa e íntima das suas meditações.
Não quero julgar aqui o jornalista fulgurante que foi Amadeu Amaral. O jornalista é uma função impessoal do artista. Como profissão, é ação toda exterior, condicionada ao tempo, discutível sobre todos os aspectos e não fixadora de indivídualidade. A nobre função do jornalismo é como a advocacia. Toda defesa é sempre justa, porque [e uma das fases transacionais da verdade. O jornalista é um elemento, um dado da equação da verdade, o iluminador de uma das faces da razão. Mas o jornalista não é o homem. Só o artista acusa a alma e o caráter. O artista é a permanência, a refração, a irradiação do “eu”.
Quis, nestas linhas, de saudade e de carinho, dizer aos meus leitores como vi, como eu amei Amadeu Amaral. Sua tumba, sob a chuva fria, está cheia de coroas. Mas todas as almas sensíveis que leram seus versos e o amaram na verdade mais íntima do seu próprio ser, cobrem, como eu, seu nome de bênçãos. Benditos sejam os semeadores da beleza. Eles nos ajudam a suportar esta coisa estúpida e egoísta que é a vida…
(Extraído do jornal “Correio Paulistano”, edição de 26.10.1949)