Paulo Eiró
Passou há poucos dias — e passou, naturalmente, sem que o público desse por isso — o aniversário da morte de Paulo Emílio de Salles. Um nome desconhecido, um talento ignorado, uma vida rápida e angustiada, sepulta sob a poeira de quatro para cinco decênios… Não importa.
Sob a caudal dos sucessos da hora presente, com todos os seus rumores, o cronista não pode esquivar-se à melancólica sedução dessa interessante figura que, do fundo do tempo, esbatido na penumbra do olvido, parece fitar-nos com seus olhos parados, fulgentes, da claridade morta dos sonhos que se extinguiram com ele.
Paulo Emílio de Salles nasceu em Santo Amaro, aí por 1836. Se São Paulo, em 1836, era uma aldeia grande, pode-se imaginar o que seria, em sua extensão e vida, esse ainda hoje pequeno e modorrento vilarejo à margem do Jurubatuba e ao sopé do Morumbi.
Foi nesse acanhado cenário, mais isolado do mundo do que as localidades sertanejas de agora, que o pequeno Paulo Emílio se fez menino e moço, conheceu os homens e as coisas, e despertou para os exercícios austeros do espírito.
Mas o aguilucho, onde quer que tenha visto a luz — seja no alto da escarpa, seja no fundo de uma grota — é sempre uma águia pequena. O rapazelho santamarense, no meio de uma população rarefeita e ignara de sitiantes, de tropeiros, de mercadores e de caipiras, surgiu com o selo divino e trágico da genialidade. Nascera com asas.
Tenteou-se. Sentiu o deslumbramento e a tortura, o orgulho, a curiosidade, a tentação, o receio, a vertigem da visão alta, para além do horizonte comum — muito para além de onde chegavam as vistas mais agudas da terreola. Viu esplendores que em redor dele ninguém suspeitava e, ai! do pobre rapaz
Também viu os abismos da miséria e da dor humana, por cujo cairel jamais esvoaçaram as almas felizes, sem mais asa que a suficiente para uns voos ançados, à flor do terreiro natal.
Reconcentrou-se, ensombrou-se, tornou-se uma figura extravagante, caprichosa e incompreensível — um “poeta”. Esse poeta chamou-se Paulo Eiró, apelido obsoleto de um ascendente qualquer, que se lhe ajustava melhor à personalidade original e lhe falava mais à estesia.
Durante algum tempo — apenas o tempo de uma juventude — o poeta passeou entre Santo Amaro e São Paulo, sem publicidade e quase em confidências, arisco e incompreendido, os seus sonhos e as suas ilusões, os seus ideais e os seus anelos, suas mágoas e os seus desconsolos.
Até que um dia, a cabeça ensanguentada dos embates do mundo, combalida pelas tormentas do coração e da inteligência, emperrou, desarticulou-se, pôs-se às guinadas, com ruídos arrítmicos de máquina em ruína. Levaram-no para o hospício.
Da profunda noite em que esteve mergulhado cerca de dez anos, não saiu senão para essa outra noite maior, sem estrelas nem luz, de cuja treva ainda ninguém tornou.
Os dez anos, ou pouco mais, que ele viveu entre a meninice e a loucura, foram-lhe, entretanto, suficientes para compor três livros de versos, várias peças de teatro e bom número de pequenos trabalhos avulsos.
Nos livros de versos — para só deles falar — o talento irradia com todo o fulgor da evidência. Sente-se ali o desabrochar de uma alma profunda e grande, sensível, apaixonada e pensativa, sedenta de compreensão e de beleza, de amplitude e de força…
Paulo Eiró foi, cronologicamente, o primeiro poeta verdadeiro de que São Paulo se pode orgulhar — de que São Paulo se poderá orgulhar quando o conhecer como é preciso, como é indispensável que o conheça.
Esperemos que alguém se incumba da apresentação, nos moldes amplos que o valor do desventurado moço tanto merece, isto é, através de uma edição conveniente dos mais perfeitos dos seus versos.
(A vida moderna, “Revista Brasil”, edição de 11.04.1918).