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Preparada há 50 anos, ainda faltam confeitos em Rafard

20/03/2015

Preparada há 50 anos, ainda faltam confeitos em Rafard

Aos 81 anos, a confeiteira Ligia Maria Vendramim Bisin, mais conhecida como vovó Ligia, contou o que viu antes e depois da emancipação; Zequinha Cerezer e a esposa Regina também compartilharam lembranças sobre a Cidade Coração
Por detrás das imensas panelas com recheios de bolos, vovó Ligia, de 81 anos, acompanhou o processo de emancipação político-administrativa de Rafard (Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Por detrás das imensas panelas com recheios de bolos, vovó Ligia, de 81 anos, acompanhou o processo de emancipação político-administrativa de Rafard (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

RAFARD – O cheiro de cândida acompanhou a conversa até o fim, mas não incomodou. A confeiteira Ligia Maria Vendramim Bisin, de 81 anos, passa um pouco do produto no chão da cozinha para deixá-la sempre limpa e livre de moscas e mosquitos. E funciona, desde que a citronela mergulhada no álcool também esteja por perto, auxiliando.

Por detrás das imensas panelas com recheios de bolos, vovó Ligia, como é mais conhecida, viu a antiga Villa Raffard se desintegrar de Capivari e saiu às ruas para comemorar ao lado de toda a população, em um dia lembrado por ela como o “mais lindo do mundo”. “Foi uma festa maravilhosa. Daqui só enxergava rojão. Não teve uma pessoa que ficou dentro de casa”, recorda, com um largo sorriso no rosto.

A emancipação político-administrativa do município ocorreu há 50 anos, em 21 de março de 1965, e todo o processo que culminou nessa conquista para os rafardenses foi acompanhado de perto por Ligia, na época com 35 anos e quatro filhos pequenos – dois casais. “Meu pai morava na Maurício Allain e o aglomerado de gente foi mais naquela rua. Então meu marido e eu pegamos as crianças e fomos comemorar lá.”

Sentada na ponta da mesa da cozinha, a pequenina senhora foi desfiando a memória em seu porto-seguro. Falou de momentos da infância e juventude, e da pacata vida que levava em uma Rafard que, segundo ela, “tinha coisas bonitas para as crianças verem, conhecerem e guardarem”. O local dispensava o acendimento de lâmpadas. Era iluminado apenas pela luz do sol de início de tarde, que realçava seus cabelos curtos, grisalhos, óculos ovalados e de armação delicada, emoldurando um pequeno par de olhos castanhos escuros sobre a pele clara – como o bolo de leite ninho que só ela sabe fazer.

A profissão de vovó Ligia superou as mudanças de endereço e a precoce perda do marido, Hermes Bisin, aos 41 anos. As peças pregadas pelo destino serviram para sustentar a ela e os filhos por várias primaveras, originando, em 1991, a confeitaria e mercearia que leva seu nome e é tocada por três dos herdeiros. Isso porque uma das filhas mora em São João da Boa Vista. “Antes disso eu tinha um comércio, antigamente a gente falava venda. Eu trabalhava lá e meu marido tinha uma perua de táxi”, conta.

“Rafard foi muito linda. Agora está diferente. Já não é mais aquela Rafard, sabe? Mas foi muito linda. Tanto que até o pessoal de Capivari vinha passear aqui”, suspira dona Ligia. “Tinha festas, bailes. Tinha o Elite, o União, depois ficou o RCA”, fala sobre as equipes tradicionais da cidade: Elite Futebol Clube e União Rafardense Futebol Clube, os quais se consolidaram em 1943, gerando o Rafard Clube Atlético, hoje extinto.

Aos domingos, costumava andar nas pedras da represa da Fazenda Leopoldina, às margens do Rio Capivari. No local, repousa uma usina hidrelétrica desativada. “A represa era ponto turístico daqui. Você via os peixes que subiam. Era muito bonito”, lembra. “Eu ia com minhas colegas: Esmeralda Rosato, Tita Pasqualini, Iracema Squilassi, Iracema Amaral. Eram todas da minha turma.”

O local também era frequentado por pombinhos apaixonados e até famílias inteiras. “Dilnei Honora com a Judite Ferrareto, que já é falecida. Foi minha amiga muito tempo, sempre foi minha amiga. O que vinha de gente de Capivari para fazer piquenique. Vinha gente de Elias Fausto, de Porto Feliz, nossa, quanta gente de Rio das Pedras. Eles vinham tudo aqui em Rafard.”

“O jardim que tinha aqui era pequeno demais. Então a gente passeava na rua. Era vai e vem: as mulheres iam enganchadas e os homens vinham vindo”, conta. “E aí aconteciam os flertes, o começo do namoro, era muito lindo, uma coisa muito pura. Não era como agora. Além de bonito, era gostoso. A gente vivia aquilo com muito prazer. Não precisava mais do que aquilo para a gente ser feliz”, garante.

E parece que foi ontem que vovó Ligia viu os festivais de música no antigo Cine Paratodos, próximo ao Supermercado Callegari, os cordões que animavam as ruas no Carnaval, a Fazenda São Bernardo, por onde passeava com o então namorado – “era só flor na estrada e árvores que se encontravam” –, e as passeatas que aconteciam quando Rafard ganhava uma instância e dava mais um passo rumo à emancipação. Além do pai, Emílio Vendramim, que foi o segundo vice-prefeito da cidade, ao lado de Archanjo Honora (1969-1972).

“Meu pai trabalhou muito nessa luta para Rafard emancipar. Minha mãe, Benedita Almeida Vendramim, também – inclusive, tem uma creche com o nome dela”, se orgulha. “Tinha desfiles aqui. Enfeitava até o caminhão do meu marido. Minha mãe pegava peças de pano e colocava tudo em volta, formando um babado. E, em cima, colocava sofá, fazia que nem uma sala.”

E o voto? “Eu sempre votei, mas não tinha candidato. Quem tinha candidato era meu pai”, admite. “Ele falava: ‘você vai votar nesse, você vai votar nesse e você nesse’. E nós fazíamos tudo o que ele queria, porque para nós ele era o melhor homem do mundo. E meu marido nunca se opôs a isso, embora tivesse outro partido. Então a gente votava do lado de papai, como a gente sempre votou, desde mocinha, desde os 18 anos.”

O aposentado Zequinha Cerezer, de 79 anos, lembra do histórico dia como se fosse ontem (Foto: Laila Braghero/O Semanário)
O aposentado Zequinha Cerezer, de 79 anos, lembra do histórico dia 21 de março de 1965 como se fosse ontem (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Usina

Em todo dia 1º de maio, bem como aos finais de safra, a usina, que antigamente pertencia a franceses, oferecia churrascos que duravam um dia inteiro para os empregados, a fim de reconhecê-los pelo trabalho. E, no Natal, os filhos deles ganhavam presentes, segundo dona Ligia. “Carrinhos, bicicletas, bonecas. Isso marcava muito.” No cinema, passavam filmes sobre o dia a dia dos trabalhadores na usina de Rafard. “A gente os via trabalhando no maquinário, com açúcar, fazendo álcool.”

A duas quadras dali, o aposentado José Cerezer, mais conhecido como Zequinha Cerezer, lembra com clareza dessa época. Cabelos brancos, testa larga, pele bem clara com marcas do sol e do tempo, olhos e boca pequenos, mas sempre sorridentes. Aos 79 anos, sonha todas as noites com as funções que desempenhou na usina. Ele foi escriturário, administrador de fazenda e chefe de mecanização agrícola.

“Rafard era melhor, porque tinha bastante serviço. A usina, que era dos franceses, tinha bastante mão de obra. Agora mecanizou muito. A pessoa perdeu o trabalho devido à mecanização”, lamenta. “Naquele tempo fazia tudo no braço: cortava cana, amarrava, carregava em carroça, em carreta, levava no vagão, depois vinha uma locomotiva e trazia para a usina. Hoje, uma pessoa faz por dez daquele tempo.”

A dona de casa Regina Bresciani Cerezer, de 77 anos, com quem Zequinha é casado há 58, discorda. “Agora está bom, também. Morei no sítio, lá no Bresciani. Casei e morei na Leopoldina 36 anos. De lá, nós construímos aqui e nos mudamos. Porque somos só nós, né Zé?”, fala, olhando para o companheiro. “Meu filho casou e foi morar em Capivari. A filha também. E quando ela construiu, nos convidou para morar com ela, mas eu disse que de Rafard eu não saía. Sempre adorei morar aqui e, se Deus quiser, eu fico até o fim”, diz. “Só que antes o ar era diferente.”

Ao lado do marido, a mulher magra e elegante, de cabelos curtos, grisalhos, e pele tão clara quanto a de Zequinha, tem um olhar distante, que não vê a hora de se recuperar para voltar a cuidar de suas flores no amplo jardim que tem no quintal. Ela colocou prótese nos dois joelhos há alguns meses e tem de ficar de molho mais algum tempo. Com a ajuda de uma bengala, continua responsável pela comida. O restante é com seu Zé. “Eu sugeri uma empregada, mas ele não quis.”

Ao lado do marido, dona Regina Bresciani Cerezer, de 77 anos, falou do seu carinho pela Cidade Coração (Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Ao lado do marido, dona Regina Bresciani Cerezer, de 77 anos, falou do seu carinho pela Cidade Coração (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Société des Sucréries Brésiliennes era o nome da usina. Na época, o local onde vive hoje com dona Regina pertencia à empresa. “Plantamos cana de ano. Até a variedade CB 4.176 foram tirados dois cortes, depois o terreno foi loteado.” Para ele, o município está trilhando um bom caminho, mas ainda faltam indústrias para que os moradores tenham onde trabalhar.

Seu Zé sente saudades daquele tempo bom, em que a usina empregava bastante gente na lavoura. “Tudo pessoa boa para trabalhar. Tinha tratorista, motorista, braçal, tinha de tudo. Dá saudade. Na Fazenda Leopoldina, onde eu tomava conta, tinha vaca de leite, uma cocheira imensa, fornecia leite para todas as pessoas da usina e das fazendas. Tirava 400 litros de leite por dia”, conta.

E o histórico 21 de março de 1965 ainda vive em suas memórias. “Foi uma festa tremenda, todo mundo saiu para comemorar. Mas tinha muita briga entre as cidades, porque Capivari não queria perder Rafard e Rafard queria ser independente”, lembra. “A Avenida Pio XII foi construída às pressas para diminuir a distância do Centro de Capivari com o Centro de Rafard, para ver se Rafard não passava a município.”

“Porém, deu tudo certo”, comemora. E, de acordo com ele, quem mais colaborou para que isso acontecesse foi Genaro Vigorito, escolhido na sequência para ser o primeiro prefeito da cidade. “Era um capivariano que pendeu para o lado de Rafard”, diz em tom de brincadeira.

Zequinha Cerezer herdou máquina de cálculo que utilizava no escritório da usina (Foto: Laila Braghero/O Semanário)
Zequinha Cerezer herdou a máquina de cálculo que utilizava no escritório da usina (Foto: Laila Braghero/O Semanário)

Na São Bernardo, Zequinha ganhou um dicionário português-francês de um diretor que queria que ele aprendesse o idioma nas horas vagas. “Mas ele me enchia de serviço que eu não vencia fazer. Muitas vezes eu ia trabalhar à noite sem ganhar nada para aprontar o serviço que ele pedia”, afirma. “E naquele tempo tinha só uma máquina de cálculo. No escritório, quando um usava o outro não podia usar.” A máquina foi herdada por ele e guardada com carinho até hoje.

Dona Regina e seu Zé se conheceram em uma festa de Santo Antônio, no Anselmo. “Ela começou a olhar para mim, eu comecei a olhar para ela e fui conversar, mas ela não me aceitou naquele dia. Só falou que dia 24 iria à Festa de São João, em Capivari, e que lá a gente conversava.” Regina trabalhou até casar. Tomava conta da fazenda do pai, que era fornecedor de cana e responsável por um moinho de fubá.

“Primeiro ela quis saber quem eu era, investigou, para depois começarmos a namorar. E quando eu embarquei no ônibus na São Bernardo ela estava lá com a irmã. Eu olhei para o lado dela e ela nem olhou para o meu lado. Então pensei: ‘ih, meu Deus do céu, não vai dar nada certo hoje’. Mas depois, no jardim, nós saímos e começamos o namoro lá.”

Unidade Básica de Saúde

Dona Maria Thereza Aprillante Gimenez e seu José Gimenez Tirelli, mais conhecido como Bepe Sapo, trabalhavam no antigo cinema da Cidade Coração, segundo vovó Ligia. Ele ficava na bilheteria e ela fazia balinhas de café para dar de troco. O dinheiro arrecadado foi separado para construir o primeiro hospital de Rafard. “Aquela mulher foi dinâmica, maravilhosa.”

Todo mês, Therezinha ia de casa em casa pegar o dinheiro de pessoas que queriam ajudar, mas foi muito criticada por quem não acreditava em seu gesto solidário. “Ela sofria muito com as coisas que falavam dela: que ela era rica e que estava querendo pegar mais dinheiro dos outros; que se aproveitava dos pobres. Ninguém acreditava que um dia teria um hospital aqui. Mas ela falava: ‘se Deus quiser vocês hão de ver um hospital em Rafard’”, recorda com angústia.

“E ela conseguiu. Mas, agora, estão acabando com o que tem”, acrescenta. Quando ia ao armazém da confeiteira comprar refrigerante, Therezinha levava consigo uma caderneta na qual marcava tudo o que gastava. “E quando ela estava com fome, porque ainda ia andar muito, pegava um pãozinho com duas fatias de mortadela, cortava no meio e dava metade para a dona Henriqueta Rosato, irmã dela. Era esposa do seu Carmelindo Rosato, avô da Vânia e do Flávio Carvalho”, destaca. “Até hoje, quando vou ao hospital e vejo a foto dela, eu me lembro e fico emocionada.”

Culinária

“Eu não sou muito fotogênica, não”, diz uma dona Ligia corada ao ver a câmera fotográfica apontada para si. “Mas estou sempre dando risada. Posso estar com dor, ninguém percebe nada.” Confeiteira praticamente desde os sete anos, se revezava com uma das quatro irmãs para preparar a marmita do pai, que na época estava construindo a Igreja São Bernardo, na fazenda de mesmo nome.

Quando seu Emílio voltava para casa, ela perguntava o que ele tinha achado da comida. “Devia estar salgada, mas ele sempre falava que estava uma delícia. E aquilo foi me dando entusiasmo.” Cansado e suado, o pai de dona Ligia sentava em uma cadeira e pedia que ela lavasse os pés dele, pois não era costume tomar muitos banhos, uma vez que para isso era preciso puxar água do poço.

“Ele morria de cócegas quando passava a mão embaixo do pé dele bem de leve. ‘Dou um nhoque na sua cabeça, hein.’ Mas ele nunca pôs a mão, nunca deu um tapa, nunca fez um nada para mim. Para ninguém dos nossos irmãos. Sempre foi um pai amoroso, bom, honesto, sempre passou coisas boas para nós. Eu falo que precisa acabar o mundo e começar de novo para vir outro igual.”

Durante as gestões de alguns prefeitos, entre eles Eugênio Tonin, Heitor Turolla e Antonio Sérgio Bragalda, além das encomendas normais, vovó Ligia fazia bolos para todas as escolas do município no Dia das Crianças. Eram 120 receitas por ano distribuídas entre as instituições, umas com mais e outras com menos, de acordo com o número de alunos.

“Vinha uma lista, eu fazia o cálculo, mas às vezes aumentava um pouco, porque as professoras também comem um pedacinho”, explica. “Eu trabalhava dia e noite, fazia todos eles decorados. Simples, mas eu colocava coco queimado, fazia campinho em cima, florzinha com as cascas do abacaxi, colocava coquinho verde para fazer de conta que era grama. Naquele tempo não tinha cereja, daí eu colocava pitanga para enfeitar.”

Vovó Ligia disse que tem amor por Rafard, mas acredita que, em 50 anos, o município poderia ter evoluído muito. “A cidade é pequena, mas era de gente que gostava de pegar no batente, de trabalhar mesmo, de lutar para vencer. Não fazia as coisas para perder. Era tudo para ganhar. O povo de Rafard era muito unido”, afirma. “Mas só o amor constrói. Enquanto tiver amor, tem sonho. Quando não tiver mais sonho, a vida não terá mais sentido.”

Aos 81 anos, a confeiteira disse que ainda não cansou de viver. Trabalha porque quer e gosta. “Eu acho que tenha a idade que tiver, a gente tem de se virar, tem de trabalhar, porque a hora que a gente não pode fazer nada, a gente se sente imprestável, um peso na Terra. Eu lutei, sofri, corri e estou aqui ainda. E essa é minha história, misturada com a história de Rafard.”

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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